O 81.º escrito da série “Em Defesa da Ortografia” tem características que nenhum dos textos anteriores possuía.
A aposta é, agora, a de apresentar diálogos humorísticos que exemplificam as graves falhas do AO90, pondo a nu as suas incoerências.
Os termos a vermelho indicam formas alteradas pelo AO90. As formas a verde, quando ocorrerem, referem grafias do Acordo Ortográfico de 1945, que, nalguns casos se mantêm como duplas grafias.
I
— Tenho cera nos ouvidos.
— Estás com um problema ótico, não é?
— Sim. E também tenho uma conjuntivite na vista direita.
— Estás com um problema ótico, não é?
— Já não percebo nada. Estás a brincar comigo?
— Não. Estou a brincar com a língua.
II
— Estou na secção infantojuvenil. E tu?
— Cheguei agora ao sector dos produtos materno-infantis.
— Andas a gastar hífenes acima das tuas possibilidades. És um gastador. Assim, não irás longe. Devias seguir o meu exemplo. Eu sou um poupador de consoantes.
III
— Agora, em Portugal, a receção é uma exceção.
— Perdão. No Brasil a recepção é que é uma excepção.
— Pois. Deve ser a unidade essencial da língua, apesar das exceções.
IV
— Bom dia. Em que posso ajudar?
— Queria ver aquela camisola cor-de-rosa que está na montra.
— Lamento, mas nessa cor não tenho o seu tamanho. Para si, só tenho cor de laranja.
— E é o mesmo preço?
— É, sim.
— Mas, tendo em conta os custos de produção, não deveria ter um desconto?
— Porquê?
— Como tem menos dois hífenes, era lógico que fosse mais barata. Não acha?
— Acho, mas isto é como a unidade essencial da língua. Umas vezes, quando há folga orçamental, usa-se o hífen. Outras vezes, não.
V
— Estão cá todos? Vamos proceder à chamada. Ótico?
— Presente!
— Ótica?
— Presente!
— Oticidade?
— Presente!
— Oticista?
— Presente!
— Mas, já acabei a chamada e ainda há gente na fila? Como pode isso ser? Tu, como te chamas?
— Optometria.
— E tu?
— Optometrista.
— E tu?
— Ortóptico.
— E tu?
— Opticometria.
— Mas sois da mesma família ou não?
— Éramos. Quando veio o AO90, começaram a cortar consoantes e expulsaram os que tinham pê. Disseram que queriam criar a maravilhosa língua unificada e universal, mas só aumentaram a desunidade essencial da língua.
VI
— Tenho epilepsia, isto é, sou epilético.
— Tens muita sorte. Muito pior estou eu que tenho dispepsia, isto é, sou dispéptico.
— Tens razão. Isso de ter uma consoante a mais, para alguns, é um problema gravíssimo. Sugiro-te que contrates um podador de palavras para te remover essa consoante.
VII
— O teu filho vai estudar Adictologia?
— Vai, vai.
— Que raio de ciência é essa?
— Diz aqui, no dicionário, que é a ciência que estuda os comportamentos aditivos.
— Então, vai ser sempre a somar, não?
VIII
— Menina Bissetriz, fez o trabalho de casa?
— Fiz, sim, Senhor Professor!
— E a menina Trissectriz?
— Também fiz, Senhor Professor!
— Ficaram com alguma dúvida?
— Sim. Ainda, hoje, mais de doze anos depois, não percebo a razão para ter uma consoante a menos que a minha prima Trissectriz. Não posso deixar de me sentir discriminada. Acho que a distribuição de consoantes não respeita a Constituição.
IX
— Vou marcar, com brevidade, uma consulta no adictologista.
— Esse é o especialista em comportamentos aditivos, não é?
— Sim, sim.
— Pode ser dinheiro mal gasto. Tu não achas que a divisão é muito mais difícil que a adição?
X
— Tenho uma infeção num pé.
— E qual foi o agente infeccioso?
— Não sei. Tenho de consultar um infecciologista.
— Não te preocupes. Perigoso seria teres uma infecção. Sem cê, isso não tem importância nenhuma.
XI
— Estive a ver as primeiras páginas dos jornais expostos no quiosque. Num deles diz que a sobreprocura para o serviço de pedopsiquiatria. Não sei se aquele para é verbo ou preposição.
— Estava acentuado?
— Não.
— A mim dá-me jeito que seja preposição. Com o serviço parado, o meu filho terá a consulta adiada até 2026.
— A mim também me dá jeito que seja preposição. Com uma sobreprocura, terei, potencialmente, muito mais clientes para transportar no meu táxi. Além disso, lembrei-me agora que esse jornal (do grupo Cofina) distingue estas duas formas, acentuando a forma verbal.
Ah! Na 95.ª Feira do Livro de Lisboa, foi lançada a obra O Poder da Literatura de Maria do Carmo Vieira. Como sempre, vale a pena ler.
Ah! Nuno Pacheco publicou na passada semana uma crónica de homenagem a Fernando Venâncio.
Ah! Há dias, li em rodapé: “Fim de semana de 40 graus”. Qual é o significado? Acabou uma semana em que a temperatura foi de 40 graus ou a temperatura será de 40 graus na sexta-feira, no sábado e no domingo?
Ah! A expressão “coração de abril” deve ser grafada com maiúscula na designação do mês: coração de Abril. O mesmo acontece com 10 de Junho. Sempre!
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