O texto de Outubro (o 85.º da série “Em Defesa da Ortografia”), na linha dos recentes antecessores, apresenta, exactamente, as mesmas características.
A aposta continua a ser a de apresentar diálogos, por vezes absurdos, de teor humorístico, que exemplificam a fantochada do AO90, pondo a nu as suas fragilidades, as suas incoerências e a sua completa ausência de lógica.
Os termos a vermelho indicam formas alteradas pelo AO90. As formas a verde, quando ocorrerem, referem grafias do Acordo Ortográfico de 1945, que, nalguns casos se mantêm como duplas grafias. A azul, temos os casos de hipercorrecção, potenciados pela aplicação do Acordo Ortográfico de 1990.
IL
— Estou tramado…
— Porquê?
— Sou arguido num processo que envolve contrafaç
— Contrafação? Então não te preocupes. Quase nem precisas de advogado. Não aplicas o Acordo Ortográfico
— Aplico!
— Então, basta dizeres isso. Crime é a contrafacção. É curioso que “Contrafacção” é o título de uma canção de Sérgio Godinho. Prova-se, assim, que o homem, além de bom compositor e cantor, tem bom gosto ortográfico.
L
— O casamento entre o Raul e a Catarina terminou de forma abruta.
— Qual deles vai ser acusado de violência doméstica?
— E quem falou em violência?
— Tu! Não disseste que foi à bruta. Abrupta é outra coisa, como devias saber. Cortar consoantes a eito dá nisto.
LI
— O que é o trabalho nocturno?
— É o que é feito no turno da noite (do latim nocte).
— Faz sentido manter o cê, por essa razão.
— Pois faz, mas agora com o AO90, é, de poda em poda, até à destruição final e lá nasce o estropício: noturno.
— E noctívago? Ainda leva cê?
— Quase nunca. A Infopédia assume-a como dupla grafia, notívago e noctívago, ao contrário de outras fontes.
— E noctâmbulo e noctilúcio?
— Continuam com cê.
— Não percebo estas incoerências, nem essas coisas das fontes.
— Acho que, pelo menos, esta parte do AO 90 foi redigida de noite e às escuras…
LII
— Já sabes o tema do teu trabalho?
— Já sei, já.
— O que te saiu?
— O Pato de Varsóvia.
— Calma aí… O trabalho não é da disciplina de História? Ou é de Zoologia?
— É de História. O professor é que corta consoantes a eito. É um poupador, percebes?
— Tem literacia financeira. Falta-lhe a outra…
LIII
— Por onde tens andado, pá? Não te tenho visto.
— Ando ocupadíssimo a pedir orçamentos para o batizado do meu filho. Só tenho recebido propostas muito altas, na ordem dos 80 euros por pessoa.
— Olha aqui. Esta empresa organiza toda a cerimónia do baptizado e cobra só 75 euros por pessoa.
— O que te parece? Se fosse contigo, o que farias?
— Eu optaria pela empresa que organiza o baptizado. Penso que dá outras garantias. Certamente, com mais uma consoante, é uma cerimónia mais completa.
LIV
— Esta noite tive um sonho estranhíssimo.
— Sonhaste com extraterrestres?
— Nada disso! Sonhei que era acionista da SAD.
— Isso é mesmo pensar em pequenino!
— Porquê?
— Digno de admiração era se sonhasses ser accionista. Isso é que não é para todos!
LV
— O que te disse o professor sobre a composição?
— Disse que não referi todos os aspetos necessários.
— Espetos? Então a composição era sobre gastronomia ou sobre Alterações Climáticas?
LVI
— O meu neto é extraordinário!
— Então porquê?
— Sabe tudo sobre futebol. Lê tudo o que é publicado nos jornais e nas revistas. Está sempre atualizado.
— Estás enganado! Para saber tudo, teria de estar actualizado. Não é bem a mesma coisa…
LVII
— Ó pai, olha, olha…
— Olho o quê, Rafael Alexandre?
— Tantas palavras…
— Onde? Tenho mesmo de trocar de lentes. Não vejo nada.
— Ali, à porta da Associação dos Espoliados pelo AO 90. Ação, acionar, acionável, acionista, ativar, reação… Todas sem cê. Estão a protestar.
— E o que querem?
— Querem a devolução do que lhes tiraram, ora essa!
LVIII
— Que porcaria, pai. Está tudo cheio de cocó de cão.
— Pois está.
— Mas naquele cartaz pede-se que as pessoas recolham os dejetos dos cães.
— Esse é que é o problema, Rafael Alexandre.
— Não percebo…
— As pessoas levam os dejetos, mas deixam os dejectos. Não é bem a mesma coisa.
LIX
— Trouxeste o que te pedi?
— Aqui está.
— Mas isso é líquido assético.
— Não foi o que pediste?
— Não. E quanto é que pagaste?
— Dois euros.
— Isso é o preço habitual do líquido asséptico, que é muito melhor.
LX
— A minha namorada tem agora um rabo-de-cavalo.
— Passou a frequentar um ginásio?
— Não. Mudou de cabeleireiro, meu estúpido!
Ah, as imagens que acompanham este escrito (primeiras páginas de jornais desportivos, exemplificam o que muitos sabem, mas poucos denunciam.
Como se lê:
Horta para o estágio?
O que significa?
O jogador Horta vai para o estágio ou vai interromper o estágio?
Como se lê:
Melhoria salarial para o avançado?
O avançado vai usufruir de uma melhoria salarial ou vai ser parado por ela?
Ah, Manuel Monteiro publicou no jornal Público um interessantíssimo artigo com o título “Os benefícios da leitura”. Como sempre, vale a pena ler.
João Esperança Barroca


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