Passados são já 47 anos, sobre aquela madrugada, na qual, todos os Portugueses pensantes e livres, dotados de Sentido de Cidadania e de Espírito Crítico, depositaram todas as esperanças de ver um Portugal finalmente livre da ignominiosa política despótica que o sufocava.
Por tudo o que aqui abordarei, repetindo o que ainda não foi alcançado e o que se destruiu, depois daquele primeiro 25 de Abril, o que teremos para celebrar hoje?
Seria da racionalidade que o actual governo, deputados da Nação, presidente da Assembleia da República, presidente da República, autarcas e partidos políticos, fizessem um acto de contrição e pedissem desculpa aos Portugueses, por pouco terem feito pelos ideais de Abril, ainda por cumprir.
Portugal é um país em franca decadência moral, social e cultural, e , em quase tudo, está na cauda da Europa, quiçá do Mundo. E disto não nos livra nem o clima, nem as belas paisagens, os monumentos, a gastronomia e a relativa segurança na vida quotidiana. Porque tudo isto é apenas para estrangeiro ver e viver.
Esta imagem representa a esperança que os jovens, a caminho do Futuro, depositaram na Revolução dos Cravos, sonhando com uma sociedade onde pudessem estudar, tirar um curso, exercer a profissão, na qual tanto investiram, viver e educar os filhos em liberdade… Quantos deles se arrastam por aí, desempregados, ou com empregos precários? Quantos deles foram obrigados a emigrar? E não foi para isto que se fez o 25 de Abril.
Que 25 de Abril celebramos hoje?
Bem, no que me diz respeito, celebro o facto de poder escrever nas linhas, o que até ao dia 25 de Abril de 1974 escrevia nas entrelinhas, através de senhas, para despistar a PIDE. Se bem que, já em “democracia”, no pós-25 de Abril, por ousar dizer verdades inconvenientes, ter sido “importunada” com vários processos judiciais, que acabaram sempre por ser arquivados, porque, obviamente, não era eu a criminosa.
Celebro também poder participar em eleições não manipuladas (por enquanto) pelo Poder, para escolher a governação do meu País. Só que foram pouquíssimas as vezes em que os candidatos, que eu tinha como honestos e incorruptíveis, para poderem exercer o Poder, e em quem votei, chegaram ao Poder. Mas não será esta uma particularidade da Democracia? Não será o Poder o espelho do Povo?
Celebro poder viajar para o estrangeiro, sem ter de pedir permissão ao marido.
Contudo, NÃO celebro a LIBERDADE de que tanto se fala, quando se fala de Abril, porque LIBERDADE sempre a tive, mesmo com a PIDE a rondar os meus calcanhares; mesmo com a censura a tentar travar-me o PENSAMENTO, porque, para mim, LIBERDADE não é poder fazer ou dizer tudo o que me apetece. Para mim, LIBERDADE é poder PENSAR, ter SENTIDO DE CIDADANIA e ESPÍRITO CRÍTICO, algo que nenhum algoz, por mais autoritário que seja, jamais poderá arrancar de mim, porque, como diz Manuel Freire, na canção que escreveu e compôs, intitulada LIVRE, a qual já cantei com ele (meu primo, em quarta geração), num tempo em que era proibido cantá-la:
“Não há machado que corte
a raiz ao pensamento (…)
porque é LIVRE como o vento (…)»
E este é o verdadeiro espírito da LIBERDADE, que deveria ser celebrada no 25 de Abril, e não é celebrada, porque o conceito de Liberdade foi amputado, e a tão ansiada DEMOCRACIA PLENA (aquela em que os governantes servem o Povo e o País, e não os lobbies e os seus interesses particulares; aquela em que o Povo é quem mais ordena) está ainda por cumprir, porque esmagada por governos autoritários, por um Parlamento ao serviço de interesses lobistas, e por presidências da República sem o mínimo sentido de Estado (exceptuando o General Ramalho Eanes).
Se o 25 de Abril trouxe à sociedade portuguesa alguns benefícios, os malefícios estão a superar esses benefícios, e Portugal retrocede a olhos vistos nas poucas conquistas que o 25 de Abril lhe trouxe. Em 47 anos desconstruiu-se o País que a Revolução dos Cravos, com boas intenções, tentou construir.
Como podemos celebrar Abril, se estamos atolados em corrupção, vigarice, hipocrisia, subserviência, servilismo, ganância, negociatas, enriquecimento ilícito, ignorância optativa, irresponsabilidade, negligência, incompetência, condutas terceiro-mundistas, fraudes, paus-mandados e imposições prepotentes?
Portugal serve de motejo a países que, apenas por mero interesse, lhe finge amizade, algo que uma cegueira mental acentuada não permite vislumbrar.
Já não somos Portugal. Perdemos a nossa IDENTIDADE e a nossa DIGNIDADE de País livre e independente, ao descartarmos a Língua Portuguesa, substituindo-a por uma mixórdia, cada vez mais bizarra e funesta, que nos envergonha a todos.
Eis o que, passados 47 anos, Portugal continua a ser:
- Um país, onde ainda se continua a viver em pobreza extrema, com crianças e idosos a passarem fome, com bairros de lata às portas de Lisboa, e centenas de sem-abrigo, sem esperança alguma.
- Um país, que continua a ter a maior taxa de analfabetismo da Europa.
- Um país dos que menos gasta na Saúde, com um Serviço Nacional de Saúde caótico, onde falta quase tudo, e o aumento da Tuberculose (agora disfarçada, pela pandemia, que tomou conta das notícias) diz do subdesenvolvimento, do retrocesso e da miséria que ainda persistem por aí.
- Um país que empurra para o estrangeiro os seus jovens mais habilitados: enfermeiros, médicos, engenheiros, investigadores, artistas.
- Um país com o terceiro pior crescimento económico da Europa.
- Um país que mantém o trabalho precário, e salários miseráveis, enquanto que para a “cultura” da morte (touradas e caça), os subsídios são obesos.
- Um país com a 3ª maior dívida pública da União Europeia.
- Um país cheio de gritantes desigualdades sociais, onde os ricos são cada vez mais ricos, e os pobres, cada vez mais pobres.
- Um país onde ainda há populações que vivem sem água encabada, sem electricidade, sem esgotos, sem telefone.
- Um país cheio de banqueiros e outros que tais ladrões, que sugam o dinheiro do Povo.
- Um país com um governo que se diz de esquerda a fazer políticas de direita.
- Um país com uma Comunicação Social submissa e servilista.
- Um país onde a Justiça anda de rastos, com processos que demoram tempos infinitos, com o intuito de prescreverem; uma justiça extremamente cara, desigual, lenta, injusta, e, em muitos casos, nomeadamente no que respeita ao MP, anda ao sabor de interesses políticos.
- Um país onde a Constituição da República é violada por quem a deveria defender.
- Um país com uma política e políticos desacreditados.
- Um país que promove a violência contra animais não-humanos, o que por sua vez gera a violência contra os seres humanos; um país que os mantêm acorrentados, enjaulados, torturados em público, para gáudio de sádicos e psicopatas.
- Um país com um elevado índice de violência doméstica.
- Um país com um elevadíssimo número de crianças e jovens em risco.
- Um país que atira crianças para arenas de tortura de animais, e permite que sejam iniciadas em práticas violentas e cruéis, roubando-lhes um desenvolvimento normal e saudável, o que constitui um crime de lesa-infância. Impunível.
- Um país cheio de grupos e grupelhos de trabalho; de secretários; de secretários de secretários; de assessores; de secretários de assessores; de comissões; de subcomissões, que não servem absolutamente para nada, a não ser para ganharem salários descondizentes com os serviços que (não) prestam; de deputados a declararem moradas falsas para receberem subsídios ilícitos; de deputados a declararem habilitações falsas; e ex-presidentes da República com gabinetes e mordomias, à excepção do General Ramalho Eanes.
- Um país que descura a sua Flora e a sua Fauna, mantendo uma e outra ao abandono e à mercê de criminosos impuníveis.
- Um país que mantém as Forças de Segurança instaladas em edifícios a caírem de podres, e com falta de quase tudo.
- Um país onde ainda existem Escolas com instalações terceiro-mundistas, sem as mínimas condições para serem consideradas um lugar de aprendizagem; e com tribunais, como o de Monsanto, que parece um galinheiro abandonado.
- Um país onde as prisões são lugares de diversão, com direito a vídeos publicáveis no Facebook; e onde droga é traficada, descaradamente.
- Um país cheio de leis e leizinhas inúteis e retrógradas, que não servem para nada, a não ser para servir lobbies dos mais hediondos, e proteger criminosos impuníveis.
- Um país que não promove a Cultura Culta, e apoia a tortura de Touros e Cavalos, a que muitos querem, porque querem, que seja arte e cultura.
- Um país que apoia chorudamente a caça, assente em premissas falsas e exterminadoras.
- Um país, cujo Sistema de Ensino é dos mais caóticos, desde a implantação da República, onde falta quase tudo, e com a agravante de se estar a enganar as crianças com a obrigatoriedade da aprendizagem de uma ortografia que não é a portuguesa, a da Língua Materna delas, estando-se a incorrer num crime de lesa-infância. Impunível.
- Um país, que tinha uma Língua Culta e Europeia, e hoje tem um arremedo de língua, uma inconcebível mixórdia ortográfica portuguesa, imposta ditatorialmente por políticos pouco ou nada esclarecidos e servilistas, que estão a fabricar, conscientemente, os futuros analfabetos funcionais, e a promover a iliteracia. E já sou poucos os que escrevem correctamente a sua Língua Materna.
- Um país onde os governantes não sabem escrever correCtamente, a Língua oficial do País que dizem servir: a Portuguesa. E como referiu Maria Alzira Seixo: «Ao menos, Salazar sabia escrever».
- Um país onde, parvamente, se começou a dizer “olá a todos e a todas, amigos e amigas, portugueses e portuguesas”, como se esta linguagem, dita inclusiva, viesse resolver as disparidades sociais. Uma desmedida parolice.
- Um país, com um presidente beijoqueiro e viciado em selfies (agora suspensas devido à pandemia) e um primeiro-ministro que não tem capacidade para ver o visível, muito menos o invisível, que qualquer cego, de nascença, vê à primeira vista.
- Um país, que em 2018/2019 foi marcado por uma constante contestação social, com o número mais elevado de sempre de greves em todos os sectores da sociedade portuguesa, número que continuaria a aumentar em 2020/2021 não fosse a invasão covideira.
- Enfim, um País que perdeu o rumo, e faz de conta que é um país.
Os 47 anos da Revolução dos Cravos não foram ainda suficientes para acabar com todas estas nódoas negras que mancham a Democracia que deveria ter nascido do 25 de Abril?
Enquanto tudo isto (e muito mais, que agora não me ocorre) não sair da lista do que não se quer para um País de Primeiro Mundo, evoluído e civilizado, o que há para comemorar em mais este 25 de Abril?
Como disse Manuel Damas, num texto escrito há dois anos, no Facebook, por esta altura:
Não foi para isto que se fez Abril. Falta cumprir Abril, porque falta:
- recuperar a Honestidade;
-recuperar a Seriedade;
- recuperar a Dignidade;
- recuperar o Pudor.
- recuperar o Sentido de Estado.
- recuperar o Sentido de Missão no exercício da Política para o Povo e pelo Povo.
E acrescento eu:
- Falta também recuperar a vergonha na cara.
Isabel A. Ferreira
***
Uma entrevista ao autor da imagem, que ilustra este texto, a quem faltam apoios para sobreviver da sua ARTE:
Fonte da imagem: https://www.facebook.com/photo?fbid=2292508157551013&set=a.207463709388812
Pois é!
Aguardamos que nos apareça um SALVADOR ou SALVADORES da Pátria, que possam encarrilar o descarrilado vagão de um governo e de um presidente da República, que permitem que se deixe chegar a Língua Portuguesa, aquela que identifica Portugal e o Povo Português, a um estado tão paupérrimo, tão vergonhoso, tão iníquo, tão desprestigiante, tão imbecil, que esmaga a alma portuguesa!
Não haverá, em Portugal, ninguém da classe jurídica, ninguém da classe literária, ninguém da classe linguística, ninguém da classe docente, ou mesmo da classe política, ou todos estes em bloco, que possam pôr a mexer uma engrenagem que destrua, definitivamente, esta massamorda ortográfica que insulta a inteligência dos portugueses e a inocência das crianças, obrigadas a levar com este mistifório na cara, como se fosse uma bofetada?
Já não existirão mais Nun’Alvares Pereiras e Padeiras d’Aljubarrota que possam livrar-nos dos invasores linguísticos, que estão a dar cabo da nossa Língua, da nossa identidade, e da nossa dignidade, como Nação independente?
É como diz o Maestro António Victorino d’Almeida, isto «é mais grave, nas suas consequências, do que (…) cuspir na bandeira!»
Isabel A. Ferreira
De Manuel Alte da Veiga, Professor aposentado do ensino universitário, recebi, via e-mail, a seguinte mensagem:
«Anexo um artigo publicado no 7 MARGENS, em que remato com uma síntese do «fenómeno AO90». Acho incrível que o chamado Governo guarde silêncio. Não sabe dar atenção. Não revela um nível satisfatório de cultura e sensibilidade. Como é possível elegermos uma Assembleia que não é representante e muito menos defensora da nossa cultura?»
A perplexidade do Professor Manuel Alte da Veiga, é também a minha perplexidade, e a perplexidade de milhares de Portugueses pensantes. Como é possível termos chegado a tão baixo nível linguístico-cultural, a partir do tal “fenómeno AO90”?
Mas vejamos o que nos tem a dizer o Professor Manuel Alte da Veiga sobgbre a nova tradução da Bíblia e sobre o AO90.
Isabel A. Ferreira
Lucas, visto por Andrea Mantegna (c. 1431-1506): Polittico di S. Luca (pormenor); Pinacoteca de Brera (Milão, Itália): “Lucas é o único que nos dá a saber o modo como trabalhou para elaborar a sua obra.”
ENSAIO BÍBLICO DE DIMAS ALMEIDA
(Sobre a nova tradução da Bíblia)
NB: O texto que segue apresenta ligeiras alterações, propostas pelo 7 MARGENS.
SOMOS CONTINUADORES DAS GRANDES PERGUNTAS
Sobre o ensaio bíblico de Dimas Almeida
Os exemplos de tradução dos evangelhos, dados por Dimas Almeida, no 4º texto do ensaio que publicou no 7 MARGENS, foram objecto de discussão num pequeno grupo de amigos. Para os meus 5 anos de grego já patinado, o texto de Dimas é o que melhor representa o original. Ficámos a pensar que os 2000 anos passados não nos fazem mais inteligentes ou mais simples, mas sim continuadores das grandes perguntas e dos grandes interesses, com as mesmas tendências fundamentais positivas e negativas, embora sujeitos continuamente a novos condicionalismos. Até gostamos de usar expressões praticamente idênticas. O que é patente nas traduções propostas por Dimas: parecem mais próprias do que se diria hoje em circunstâncias paralelas.
Mas faltava-me ver traduções de passagens «delicadas», como as que se referem à última ceia e sobretudo aos vários títulos que os evangelistas e escritores ou comentadores ao longo dos tempos foram aplicando, com avanços e recuos, à pessoa e missão de Jesus. O texto nº 9 chamou-me a atenção, ao falar de Logos eterno, de filho de Deus, unigénito, etc..
Como é próprio de conceitos «ricos», o significado de monoghenês e theós dificilmente poderá ser definido e facilmente servirá de apoio a ideias preconcebidas. Mas parece-me demasiado obscura, semântica e estilisticamente, a parte em negrito da frase: «Um Unigénito, Deus, o que está no seio do Pai, é que foi seu intérprete». Já o resto da tradução parece muito feliz e mais afim com a noção de Espírito de Deus (que podemos sentir como experiência relacional da íntima e eterna Palavra e Sabedoria). Aliás, a experiência de Deus como «uno», na Bíblia hebraica e no Corão, deveria ser tida em conta nas traduções, como notas ou até enriquecendo as introduções.
Também se deveria dar atenção explícita ao facto de, por trás desta preocupação pelo sentido original dos termos mais provocadores de dissensões, se desenharem cada vez com mais força sentimentos quer fundamentalistas quer depreciativos. Como acontece aos conceitos de «Palavra de Deus», «Livro sagrado» e «Revelação».
Apresentarei algumas achegas (minhas e não só) sob a forma de questões (à moda das Responsa a Pontificia Commissione De Re Biblica edita, proclamadas sob o fortíssimo peso da autoridade absoluta dessa Pontifícia Comissão – elaboradas desde 1905 até 1933).
QUESTÃO 1: «Palavra de Deus» não será uma expressão compreendida muitas vezes de modo idolátrico e irracional? Como Palavra incarnada, não será equivalente ao estatuto do Corão, à semelhança do que é Cristo para os cristãos?
QUESTÃO 2: Não subsistirá ainda a subterrânea pretensão de descobrir uma «fórmula de Deus» nos chamados livros sagrados? E que cada «fórmula» se apregoa como a única genuína, seja em disputas inter-religiosas seja dentro da mesma confissão de fé? Pior ainda, usando os livros sagrados como se fossem livros de receitas (espirituais, políticas, morais…)?
QUESTÃO 3: Lendo os comentários apensos a The Jewish Study Bible (2.ed.Oxford Univ. Press,USA.2014), The Jewish Annotated New Testament (2.ed.ibidem (2017), The New Oxford Annotated Bible With the Apochrypha.(NRSV.4.ed.Ibidem.2010), guardei a impressão de que o Judaismo, relativamente ao Cristianismo e Islão, aceita melhor a elaboração (razoável) de sentidos diversos. Como que são mais realistas, praticamente admitindo que a palavra original já é uma espécie de tradução do sentimento e pensamento, condicionada pela cultura local, pelas virtualidades da linguagem utilizada e pelas pressões de grupos de poder. Consequentemente, por que não admitir que qualquer edição ou qualquer tradução exprime um incremento da vida espiritual ao reagir perante os textos e comentários ao longo do tempo, estimulando o desejo especificamente humano – compreender-se a si e ao universo e a todas os fenómenos de que vamos tendo consciência? Não teremos que ser mais humildes e enriquecermo-nos com as contínuas interpretações pelos tempos fora?
QUESTÃO 4: As traduções interconfessionais (não só cristãs) não deverão ser preferidas ao trabalho de um só grande autor ou, o que não é melhor, de uma equipa que não se arrisca a pensar fora do respectivo catecismo?
QUESTÃO 5: Se nenhuma tradução é garantidamente livre de contradições, incorrecções e passagens obscuras, em geral já existentes no original, por que não partir do princípio de que TRADUÇÃO NÃO É TRAIÇÃO: é expansão do dinamismo da obra original?
QUESTÃO 6: Por que não aceitar a justificação apresentada pelo próprio texto corânico: as passagens questionáveis só põem à prova a fé ou boa intenção do crente? Aliás, o próprio Maomé (como qualquer outro autor) não evoluiria no pensamento e no agir?
QUESTÃO 7: Por outro lado, se consideramos a Bíblia Hebraica (e os seus Apócrifos e Comentários) como reacção mais ou menos elaborada às várias situações da vida de um povo em formação, não devemos considerar «normais» a existência de passos obscuros e contraditórios?
QUESTÃO 8: Sendo tão importante a exactidão linguística e a retenção dos valores das línguas indo-europeias (particularmente dos ramos germânico e itálico), por que é que se aceitou tão submissa e acriticamente a proposta do chamado AO90? Valerá a pena fechar os olhos às falhas graves quanto à fundamentação científica, legalidade do processo e quais os objectivos que dissimulada, mas realmente interessava atingir? E quanto aos considerandos históricos e geopolíticos? Não importa o embrulho instaurado, que torna mais confusas as traduções (incluindo a mistura brasileiro-português) e delapida a riqueza semântica das palavras (embora estas não sejam «a Palavra»)?
O vírus do facilitismo, interesseirismo disfarçado, mais a indiferença pela cultura e beleza produzem maus originais, péssimas traduções e até abrem portas a pandemias.
MANUEL ALTE DA VEIGA: Professor aposentado do ensino universitário.
«Será uma exigência a discussão da Língua Portuguesa e do AO90 nos vossos debates, caros candidatos à Presidência da República. Os Portugueses, de quem se dirão representantes, desejam-na.» (Maria do Carmo Vieira - Professora)
«A Língua Portuguesa também deveria interessar aos candidatos à Presidência»
Por Maria do Carmo Vieira
Todos os cidadãos têm o direito de ser esclarecidos objectivamente sobre actos do Estado e demais entidades públicas e de ser informados pelo Governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos. N.º 2 do Artigo 48.º da Constituição.
Em qualquer eleição que se realize, não há candidato que não justifique a sua candidatura, invocando o desejo de bem servir o país e o povo, ou que não alerte e incentive para a necessidade de, em democracia, ser benéfica a intervenção dos cidadãos porque forma de a sustentar e fortalecer. Palavras que conduzem ao significado etimológico de Política e que é, ou não, do conhecimento dos candidatos. Inicialmente, congratulámo-nos com a bondade dessas palavras, depois conhecemos a desilusão, mas na complexidade que caracteriza todo o ser humano, apesar de desiludidos, incitamo-nos continuamente a teimar, a recomeçar, como uma espécie de sobrevivência espiritual.
Redigido o preâmbulo, dirijo-me agora a todos os candidatos presidenciais cujos encontros a dois já se iniciaram nas televisões, em princípio, para que os cidadãos conheçam as suas ideias relativamente aos vários temas que caracterizam e tecem a vida de uma sociedade. Relevante será o papel dos jornalistas que moderam os debates e a quem se exige conhecer e estar atento a esses temas essenciais: saúde, educação, cultura, trabalho, migração, economia, política externa, etc. Forçosamente, incidirá a minha atenção sobre a Língua Portuguesa, património privilegiado em duas áreas íntimas entre si – Educação e Cultura – que são substanciais no desenvolvimento de um país e na formação espiritual dos seus cidadãos. Duas mais-valias que não podem ser interpretadas na perspectiva do lucro imediato, mas a médio e a longo prazos.
Assim acontece com a Natureza que requer tempo para criar e que o Homem tem destruído, com uma rapidez estonteante, movido pela ganância do lucro rápido, bem evidente na proliferação de culturas intensivas e na construção desenfreada, com a consequente destruição da biodiversidade e da extinção de espécies (serra de Carnaxide, barragens a eito para depois serem vendidas ou aeroportos sem um sério estudo de impacto ambiental …), numa miríade de exemplos que poderiam ser identificados.
Mencionar a Língua Portuguesa, património identitário que “gerações dos nossos maiores” pacientemente trabalharam, enriqueceram e valorizaram, implica forçosamente pensar na sua ortografia, relíquia que nos conta a história das múltiplas influências geográficas e linguísticas, ao longo dos tempos. Uma ortografia que disputas políticas, negociatas, sucessivas aventuras e irresponsabilidades várias têm vindo a lesar impunemente. E chegamos ao cerne da questão: o Acordo Ortográfico de 1990 que nos foi imposto e cuja discussão nunca foi abertamente feita, com a lamentável cumplicidade da Comunicação Social, na sua generalidade, que se tem recusado abordar o tema quando nesse sentido contactada.
Senhores candidatos à Presidência da República, tendo em conta os ideais democráticos que vos orientam, ou deveriam orientar, e o respeito pela Constituição, no dever de defesa e de preservação do nosso património cultural (artigo 78.º, n.º 1) em que se integra a Língua Portuguesa, será intolerável que não discutam, nos debates em que intervirão, e a par de outros temas, a polémica que se arrasta há anos relativamente ao AO90 (independentemente de serem a favor ou contra) e cujas nefastas consequências são visíveis no dia-a-dia, com uma repercussão fortemente negativa na qualidade do Ensino e da Cultura.
São indesmentíveis a instabilidade e o caos que este acordo trouxe, e não há quem não os presencie, seja na aplicação dos hífens ou na existência das facultatividades ou na supressão de acentos, ou nas novas palavras, como “receção” ou “conceção”… que em flagrante contrariam a impossível “unidade ortográfica” ou ainda na avalancha diária de “corrutos”, “sutis”, “núcias”, “patos”, “impatos”, “contatos”, “convição”, “batérias”, “infeciologia”, “fatos”, “putrefato”, “manânimo”, exemplos que se desdobram numa listagem infindável de palavras inventadas que a Associação Portuguesa de Tradutores, entre outros, tem rigorosamente registado. A própria pronúncia das palavras está a ser atingida por esta voracidade e por isso mesmo ouvimos amiúde, na televisão e na rádio, a euforia de “infeção” (com a vogal fechada) e “infeciologia” (aqui com o “e” aberto, mas falhando um “c”, ao arrepio das próprias regras deste acordo que o mantém porque “pronunciado”).
Tendo ainda em conta que:
Creio, na base do que enumerei, repetindo vozes em número infindável, que será uma exigência a discussão deste tema, nos vossos debates, caros candidatos à Presidência da República. Os Portugueses, de quem se dirão representantes, desejam-na.
Termino com palavras de António Emiliano, conhecendo as nefastas experiências dos professores com o uso forçado do AO90 e certa de que serão também motivo de reflexão: “A ortografia não é apenas património cultural do Povo português […] é a ferramenta que dá acesso a todas as áreas do saber. A estabilidade ortográfica é um bem que importa preservar: pôr em causa a estabilidade ortográfica é atentar contra a qualidade do ensino, contra a integridade do uso da língua e contra o desenvolvimento cultural e científico do povo português.”
Fonte: https://www.facebook.com/groups/178207905663865/permalink/1864409907043648/
Subscrevo este texto de João-Afonso Machado, publicado no Blogue Corta-Fitas.
Por tudo o que conhecemos do carácter de Eça de Queiroz, ele jamais desejaria que a sua ossada repousasse no Panteão Nacional. Eça está acima dessa vã vaidade, além de que Tormes é o lugar ideal para acolher um corpo que deu guarida a um espírito que, se existisse nos dias de hoje, demoliria os que, para proveito político, pretendem desalojá-lo da paz da sua sepultura, varrida pelos ventos…
Contudo, como refere João-Afonso Machado, a derradeira palavra pertencerá à Família Eça de Queiroz.
Isabel A. Ferreira
Por João-Afonso Machado, em 19.12.20
«O grande Eça no Panteão Nacional?»
«Está na ordem do dia: os restos mortais de Eça de Queiroz, pretende o Governo de Costa trasladá-los para o chamado Panteão Nacional.
O grande Eça, caso não saibam - e muitos não saberão... - morreu em Neuilly, França, e foi o cabo dos trabalhos para o trazer para Portugal, onde foi sepultado nos Prazeres, Lisboa, e, posteriormente, levado para Tormes, em Santa Cruz do Douro.
Ali repousa na sua merecida paz, longe da política e de todos os Abranhos deste mundo.
Agora, manifesta o Governo a sua vontade em o levar para o Panteão Nacional. Onde jazem figuras várias, nenhuma com a sua visão da política, do mundo e da Arte. Aliás (sem procurar apoio historiográfico), arrisco dizer - quase todos os sepultos no dito Panteão, far-se-iam mais depressa em nada se Eça sobre eles escrevesse...
Eu suponho - e espero! - a derradeira palavra caiba à Família Eça de Queiroz. E contra a Família Eça de Queiroz, é óbvio nada tenho a contradizer. Tenho é algumas ideias na cabeça. Por exemplo:
- Os governantes da época de Eça não perderam muita atenção com a sua morte. Só devido aos esforços de alguns amigos dele, atribuiram uma "pensão de sobrevivência" (aliás, de extrema necessidade) à viúva, a Senhora Dona Emília de Castro, e aos Filhos;
- Os ditos Filhos perderam essa pensão em virtude das suas convicções monárquicas, pelas quais se manifestaram nas "Incursões" de 1911-12;
- Eça, monárquico que foi, é lido da frente para trás, assim se esquecendo os seus romances A Cidade e as Serras, e A Ilustre Casa de Ramires, entre outros escritos do maior significado;
- Eça, confrontado com esta III República morreria do primeiro mal que lhe desse. Calcula-se que esse mal seria a própria enunciação do termo - "III República". É só imaginar o grande Eça em conversa com o Eduardo (Dâmaso) Cabrita;
- Pensando em As Farpas, Ramalho acompanhá-lo-ia, também, em tal desterro no Panteão. Mas Ramalho, politicamente, não é tão sonante. Mais a mais, sobreviveu à Monarquia e (in Últimas Farpas) escreveu - «A República continua dando ao mundo o mais inacreditável espectáculo - existe»...
Costa quer popularidade. Eça, que na História vai imenso mais além deste batoteiro, quer sossego. Está bem em Tormes, e recomenda-se. Por isso... Vamos todos zurzir bengaladas nestes Palmas Cavalões (e cavalonas...) da sacanice governamental. Pelo inesquecível e inigualável Eça de Queiroz.»
Fonte:
https://corta-fitas.blogs.sapo.pt/o-grande-eca-no-panteao-nacional-7168155?view=35892891#t35892891
Nota: clicar no link para ler os comentários ao texto, porque vale a pena.
«Erros como estes não existiam antes do “milagroso” Acordo Ortográfico, que abriu a porta a tais enormidades» (Nuno Pacheco in Jornal PÚBLICO)
Por Nuno Pacheco
Pelos vistos, não há forma de fugir a isto. No dia em que o Governo anunciou restrições na circulação e na vida quotidiana dos portugueses, devido ao não amainar da pandemia da covid-19, logo soubemos que tais restrições tinham “excessões”. Grandes excessos, daí o aumentativo? Não, excepções, casos em que a regra não se aplica. Só que, como o Acordo Ortográfico resolveu tirar-lhe o P, a passagem de excepção a “exceção” deu-lhe carta-branca para ser… “excessão”. Excesso de zelo acordista, atarantamento ou simples estupidez, a verdade é que erros como este não existiam antes do “milagroso” Acordo Ortográfico, que abriu a porta a tais enormidades.
Pois na RTP, o único canal de televisão que teima em ter “telespetadores” em vez de telespectadores (como se diz e escreve no Brasil e no resto do mundo lusófono), lá tivemos direito a “restrições com muitas excessões”. Podia ser lapso, ou erro passageiro, mas repetiu-se – portanto, foi mesmo convicção (ou será “convição”?). Não só na RTP, também na CMTV. Assim: “Excessão: surto único”. A par do português escrito com nexo, anda para aí a medrar (talvez com ligeira troca de letras esta palavra fosse mais verdadeira) uma língua estranha, que se rege por sons sem ligar a significados.
Talvez nem seja só por sons, já que também voltaram os “impatos” e os “corrutos”, por “impactos” e “corruptos”. De novo na RTP, numa legenda do programa A Nossa Tarde (e estas “descobertas” devem-se a leitores e espectadores atentos, que as vão divulgando, indignados, nas redes sociais), lá estava esta linda frase: “O impato do isolamento nos seniores”. Sim, senhor, que belo impato. Mas não é de hoje. A Renascença, no dia 12/11/2018, ao anunciar a “actualidade” (sem acordo!) na Edição da Noite, falava do “movimento #MeToo e o seu impato em Portugal”. Ora este insano e repetido “impato” só empata um entendimento digno do português. Apesar disso, vai-se multiplicando sem freio nem emenda. E que dizer do jornal Sol, tão respeitador do Acordo Ortográfico, que nas suas efemérides fala do “muito corruto ditador Xá da Pérsia”?
Voltando às medidas de emergência: cinco constitucionalistas ouvidos pelo PÚBLICO vieram defender “que o Parlamento devia legislar com urgência com vista à criação da figura da emergência sanitária”. Isto porque, segundo um deles, o antigo deputado e dirigente do PS Vitalino Canas, “uma resolução do Conselho de Ministros não é um instrumento legislativo e muito menos tem a legitimidade e robustez para restringir direitos fundamentais”. Não deixa de ser cómico verificar que, neste caso, uma resolução “não tem robustez” nem legitimidade, sendo necessária uma lei, quando o acordo ortográfico nos foi imposto precisamente por resoluções, sem qualquer lei que o legitime. Até há uma lei, na verdade, mas é a que legitima a reforma ortográfica de 1945 – e que continua em vigor.
Mudando de assunto, mas permanecendo na língua. Quem votou, por estes dias, em eleições para escolher entre Biden e Trump? Os americanos? Os norte-americanos? Os estado-unidenses? Os estadunidenses? Na verdade, todos eles. Os dicionários admitem todas estas designações para os habitantes dos Estados Unidos da América, embora as duas últimas sejam usadas quase em exclusivo no Brasil. Porém, como os portugueses adoram copiar modas (e a língua não é excepção), há quem insista que o mais correcto seria optar por estado-unidenses ou estadunidenses, porque americanos seriam todos os habitantes do continente, desde a mais extrema ponta da América do Sul até ao extremo norte do Canadá.
Mas em que América estaria a pensar Allen Ginsberg quando gritou num poema “America I’ve given you all and now I’m nothing!” E quando se canta, em West Side Story, “I like to be in America/ Okay by me in America”? E a que jovens se referia David Bowie em Young americans? E que cidadãos retrata a série televisiva The Americans? E o que seria Carmen Miranda a cantar “Disseram que voltei estadunidencizada”, em lugar de “Disseram que voltei americanizada” no célebre samba de Luís Peixoto e Vicente Paiva? Chamamos reino-unidenses aos cidadãos do Reino Unido? Republicanos-populares aos chineses? É verdade que Estados Unidos só existem hoje os da América. Mas já existiram os Estados Unidos da Venezuela (até 1953), os da Colômbia (até 1886) e os do Brasil (de 1889 até 1968), agora repúblicas. Por isso, será mais avisado chamar aos cidadãos dos Estados Unidos o que eles chamam a si próprios: americanos.
NOTA: Por lapso, corrigido devido à oportuna chamada de atenção de um leitor, os Estados Unidos do Brasil não tinham sido referidos no texto original. Fica feita a rectificação.
Fonte:
https://www.publico.pt/2020/11/05/culturaipsilon/opiniao/tanta-excessao-corremos-risco-nao-resistir-impato-1937920?fbclid=IwAR0Qe9BZs90jeo-LCcC2WJ-ulPmXVSUo5LwOLCccnxs93-w-vup-zhG3UJk
Origem da imagem: Internet
Elucidem-me, por favor:
Uma vez que sou muito ignorante, nestas coisas de leis, alguém de direito, pode explicar-me por que é que uma Resolução do Conselho de Ministros (RCM) é inconstitucional, para impor restrições à circulação de pessoas entre concelhos, em tempo de pandemia, ao ponto de André Ventura, deputado único e presidente do partido CHEGA, considerar a medida inconstitucional, por ter sido decretada fora do Estado de Emergência, levando o caso a tribunal; mas uma RCM já é constitucional, para impor a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 (que nem sequer um acordo é) no sistema educativo, no Governo e em todos os serviços, organismos e entidades na dependência do Governo (aqui podemos incluir vários órgãos de comunicação social), bem como no Diário da República?
E o Supremo Tribunal Administrativo (STA) aceitou a providência cautelar interposta pelo CHEGA contra as restrições de circulação entre concelhos, que entra em vigor a 30 de Outubro e se prolonga até 3 de Novembro, e o Governo tem 24 horas para responder?
Mas com a RCM que impôs o AO90, já não se passa nada disto?
As Resoluções em questão, dizem o seguinte:
Resolução do Conselho de Ministros 89-A/2020, 2020-10-26
Determina a limitação de circulação entre diferentes concelhos do território continental no período entre as 00h00 de 30 de Outubro e as 06h00 de dia 3 de Novembro de 2020.
Resolução do Conselho de Ministros 8/2011, 2011-01-25
Determina a aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa no sistema educativo no ano lectivo de 2011-2012 e, a partir de 1 de Janeiro de 2012, ao Governo e a todos os serviços, organismos e entidades na dependência do Governo, bem como à publicação do Diário da República.
Assim sendo, porque é que a RCM 89-A/2020, considerada inconstitucional (não estamos em estado de emergência) teve direito a interferência do STA, e a RCM 8/2011, que TODOS os juristas consideram inconstitucional, (e também não se estava em estado de emergência e já se provou por A+B que é inconstitucional) continua a valer, a despeito de tudo e de todos e à margem da Constituição da República Portuguesa, com o ilustre aval de Sua Excelência, o Presidente da República Portuguesa?
Haverá alguma coisa aqui que me passou ao lado, ou em Portugal o que convém a uns poucos é inconstitucional, e o que não convém à maioria dos portugueses é constitucional?
Isabel A. Ferreira
«Parece que se trata de uma mudança de bandeira, de hino ou até de território. Não é. É a justa anulação de uma medida tomada num período de insensatez.» (Nuno Pacheco)
Por Nuno Pacheco
A língua portuguesa tem os seus encantos, já se sabe, mas também tem dotes de magia. Ora vejam como é possível, com ligeira mudança de palavras, alterar substancialmente as idas do primeiro-ministro ao Parlamento: de “duas vezes, num mês” a “dois meses, uma vez”. Como soa idêntico e é tão diferente! Mas é confortável, sem dúvida. Em particular para o primeiro-ministro. Aliás, a revisão do regimento interno da Assembleia da República tem sido muito dada a esta palavra, “conforto”. Palavra tão necessária em tempos de pandemia, de crises, de lamentos. E até o Presidente da Assembleia da República beneficiaria deste “conforto” (esta foi a palavra empregue por apoiantes e detractores), para admitir ou rejeitar iniciativas. Não há dúvida: por este caminho, a Paz morará definitivamente em São Bento, em Setembro.
Mas enquanto todos vão de férias (ah, doce Agosto, mesmo ensombrado pela pandemia!), não será inútil recordar uma antiga história que ainda não chegou ao seu termo. Em São Bento, sim, em São Bento. Recuando quase duas décadas: no dia 6 de Fevereiro de 2004, Portugal ratificou finalmente a Convenção de Viena de 1969 sobre Tratados Internacionais, em vigor na ordem jurídica internacional desde 27 de Janeiro de 1980. O que diz esta Convenção? Que “a adopção do texto de um tratado efectua-se pelo consentimento de todos os Estados participantes na sua elaboração” (art.º 9.º) e que a sua entrada em vigor (art.º 24.º) se faz “nos termos e na data nele previstos ou acordados” ou, na falta destes, “logo que o consentimento em ficar vinculado pelo tratado seja manifestado por todos os Estados que tenham participado na negociação.” A Convenção, seguidos os trâmites da praxe, passou a vigorar em Portugal a partir do dia 7 de Março de 2004. Quase cinco meses depois, foi aprovado no parlamento o segundo protocolo modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, estabelecendo o seguinte: “[o AO90] entrará em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto da República Portuguesa”. O terceiro, em oito países. Isto apesar de a Convenção de Viena estabelecer que, para um tratado internacional (e o dito acordo é um tratado) entrar em vigor, é preciso que “o consentimento em ficar vinculado pelo tratado seja manifestado por todos os Estados que tenham participado na negociação”.
Esta irritante discrepância, a par dos efeitos nefastos que um acordo assim “amanhado” foi tendo no dia-a-dia da escrita e da fala em língua portuguesa, levou um grupo de cidadãos a recolher assinaturas para uma ILC (Iniciativa Legislativa de Cidadãos) que procurasse reverter tal decisão. Com base neste simples pressuposto: para um acordo que envolve oito países, não chegam três “assinaturas” oficiais, ou ratificações, são mesmo precisas oito. Objectivo explícito: revogar a resolução que aprovara o segundo protocolo modificativo.
A coisa levou o seu tempo, consumindo energias e entusiasmo (a recolha de assinaturas foi bastante participada e profícua) e no dia 10 de Abril de 2019, pelas 15h30, as caixas com as assinaturas lá foram entregues oficialmente em São Bento. Verificadas as assinaturas, por amostragem, e feitos todos os acertos, a ILC-AO foi finalmente aceite e transformada em Projeto de Lei 1195/XIII, com a assinatura de 21.206 subscritores, no dia 30 de Outubro de 2019 (mais de meio ano depois). Muito bem. Para abreviar, que já vai longo, houve a necessária audição dos representantes dos subscritores e depois vieram as dúvidas. Apesar de, no documento oficial de aceitação da ILC-AO, se dizer claramente que “o articulado do projeto [sic] de lei parece não colocar em causa a competência reservada do Governo para negociar e ajustar convenções internacionais”, duvida-se que cidadãos, através de uma lei, possam reverter uma resolução da AR. Esgrimem-se argumentos e gasta-se, naturalmente, tempo. O deputado-relator da Comissão de Cultura faz o seu relatório, duvida, pede um parecer à 1.ª comissão, que também duvida, faz outro relatório, que também duvida. Com os subscritores sempre argumentando, e a contestar as dúvidas. Passado mais de um ano e três meses sobre a entrega da ILC na AR, espera-se agora que o Presidente da Assembleia apresente o caso à Conferência de Líderes. A coisa assume tamanha gravidade que parece que se trata de uma mudança de bandeira, de hino, talvez mesmo de território. Não é. É uma simples e justa anulação de uma medida tomada num período de insensatez. Não anula o Acordo Ortográfico (o que é pena, no meu modesto entender), mas estabelece-lhe regras civilizadas de acordo com a Convenção de Viena, não com duvidosas conveniências.
Claro que se a Lei das ILC (17/2003, de 4 de Junho) tivesse sido cumprida, o relatório teria obrigatoriamente de ser escrito num prazo de 30 dias “após a admissão” da ILC (não foi, como se viu) e, diz o artigo 9.º, “esgotado esse prazo, com ou sem relatório, o Presidente da Assembleia da República deve agendar o debate e votação em plenário.” Simples, não é? Mas não foi. Mais um motivo para não calar a indignação nem baixar os braços.
Comentários a este texto:
Eu acho que o português europeu como língua mãe, está em perigo, já que estás regulações o que faz é mudar a língua para o dialeto mais forte e este es o português do Brasil, que praticamente é um idioma diferente ao português europeu, e este terminará de abrangir ao último.
Manuel de Campos Dias Figueiredo
A Assembleia da República, a casa dos maus exemplos democráticos.
Fonte:
Daí que a estupidez reine em Portugal, com o aval dos que deviam defender a Língua Portuguesa - presidente da República, primeiro-ministro, ministros da Educação, da Cultura e dos Negócios (dos) Estrangeiros, deputados da Nação, jornalistas, editores, etc. - e que mais não fazem do que, intencionalmente, seguindo instruções obscuras, atirá-la pela borda fora, como algo altamente pestilento… E o pior é que nem sequer têm a noção do que fazem, e deliram, quando dizem que a Língua Portuguesa está a expandir-se cada vez mais…
Está, está! Está a expandir-se cada vez mais para o fundo de um abismo… Exemplo:
Fonte da imagem:
(No Brasil, escreve-se excePção com pê. Em Portugal, nem por isso, mas quando se acerta no pê, desacerta-se no resto. E a isto chamam expandir a Língua)
Mas vejamos o que nos diz João A M Santos, a propósito das “duplas grafias”.
Por João A M Santos
«A dupla grafia não é poder escrever como quiser. É muito mais pernicioso e perverso que isso. Obedeceu a critérios obscuros que pretendem aproximar a ortografia de Portugal da ortografia do Brasil sem que as pessoas dêem por isso.
Após o acordo ortográfico, continuaram na mesma a existir duas ortografias distintas: a de Portugal e a do Brasil. Tirando alguns casos pontuais, como o uso do trema, alguns acentos diferenciais e alguns hífenes, a ortografia do Brasil manteve-se quase inalterada.
Em Portugal é que a confusão foi maior. Temos várias classes de palavras que foram modificadas.
Nos casos em que as consoantes eram quase praticamente mudas (em muitos casos até nem eram) e/ou onde tinham uma função diacrítica, foram simplesmente eliminadas e espera-se que a população decore a nova grafia da palavra. É o caso de "Egipto" que passou a "Egito" e "ceptro" que passou a "cetro", colando-se à norma brasileira, mesmo havendo falantes em Portugal que ainda pronunciam o "p".
Nos casos em que uma percentagem de portugueses ainda pronuncia a consoante, mas no Brasil já não se pronuncia nem se escreve, foi deixada a facultatividade (dupla grafia) em Portugal. É o caso de "aspecto" que pode ser escrito também "aspeto" e "espectador" que pode ser escrito "espetador". Normalmente, os portugueses, como não sabem quais são estas palavras, optam por retirar a consoante, escrevendo a palavra como esta se escreve no Brasil e mesmo em palavras de onde esta não foi retirada.
Nos casos em que a consoante se pronuncia nitidamente em Portugal mas não no Brasil, foi deixada como está, e a grafia manteve-se na mesma sem se alterar. É o caso de "facto" ou "contacto" (Portugal) e "fato" e "contato" (Brasil). Acontece um caso semelhante com alguns acentos: Antônio no Brasil, António em Portugal, que ficaram na mesma.
Nos casos em que a consoante é muda em Portugal mas é pronunciada no Brasil, foi retirada na palavra portuguesa e mantida no Brasil. Este é o caso que nos mete mais impressão, pois foram CRIADAS novas palavras para uso exclusivo em Portugal, enquanto que no Brasil a palavra foi deixada inalterada e tal como se escrevia em Portugal antes do acordo. É o caso, por exemplo de "recepção" (Brasil) e "receção" (Portugal).
Portanto, está a imaginar que o acordo não serve para nada se o objectivo for unificar as ortografias. As ortografias continuam diferentes, se não ainda mais (foram criadas palavras novas para uso exclusivo em Portugal). Se juntarmos as duas grafias diferentes no Brasil e em Portugal, ao léxico também diferente, à sintaxe que também tem diferenças, e palavras que se escrevem de forma diferente, como "electrão" (Portugal) e "elétron" (Brasil), chega rapidamente à conclusão que um livro traduzido para a ortografia do acordo ortográfico NUNCA poderá ser editado em Portugal e no Brasil sem ser alterado significativamente para passar de um país para o outro.
Daí que a utilidade deste acordo seja zero, existindo apenas para se poder dizer que houve um acordo e travar o Brasil caso queiram transformar a norma brasileira numa língua própria, que é o pesadelo de muita gente e o terror do Governo e de quem defende este acordo ortográfico.»
Fonte:
Eis a saga desta ILC-AO, descrita no Jornal Público, por Nuno Pacheco, um dos seus intervenientes.
O que se passa ao redor disto não pertence a Estados democráticos, mas tão-só a Estados ditatoriais. E quem tiver dúvidas, leia o texto de Nuno Pacheco e tire a sua conclusão.
Como me informou um professor: «Como se previa, este bloqueio na A.R. serve interesses comerciais (no plano editorial, sobretudo quanto aos manuais destinados ao Ensino) e assim, o poder político instalado beneficia-os (e descaradamente) dado existir uma CONVERGÊNCIA DE CONVENIÊNCIAS mais do que visível».
Mas entretanto, aqui fica a promessa: «Matar este assunto na secretaria, negando-lhe o plenário, poderá ser uma indignidade. Mas não o travará.»
Como me informou um professor: «Como se previa, o bloqueio na A.R. serve interesses comerciais (no plano editorial, sobretudo quanto aos manuais destinados ao Ensino) e assim, o poder político instalado beneficia-os (e descaradamente) dado existir uma CONVERGÊNCIA DE CONVENIÊNCIAS mais do que visível;
Isabel A. Ferreira
Por Nuno Pacheco
«Ortografia: de recomendações e petições está o inferno cheio
Era bom que a Assembleia da República cumprisse a sua função de decisor, não de mero pedinte.
Há histórias verdadeiramente exemplares — assim começava eu uma crónica onde procurava, em sentido figurado, demonstrar o ridículo de um acordo que diz respeito a oito países poder vigorar (no espaço dos oito) com a assinatura de apenas três. Tratava-se, e trata-se ainda, do denominado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Não propriamente da polémica em torno da sua alegada utilidade (nunca demonstrada) ou proveito (rigorosamente inexistente), mas apenas em torno destes números: três não são oito, nem por oito podem valer. Só isto. Passados uns tempos, justifica-se repetir a frase: Há histórias verdadeiramente exemplares…
E qual é, desta vez? A mesma, mas com peripécias diferentes e sem sentido figurado algum. Vale a pena contá-la: no dia 30 de Outubro de 2019, a Assembleia da República deu nome e número de projecto de lei (1195/XIII) a uma iniciativa legislativa de cidadãos (ILC-AO) com vista à (cita-se o documento da AR) “revogação da Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, de 29 de julho (Aprova o Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa).” O tal dos três em vez de oito. Recapitulando, para quem não segue a história desde o início: em 1990 assinou-se um acordo ortográfico (AO90) que se propunha entrar em vigor em 1994, logo que fosse ratificado por todos os parlamentos dos Estados envolvidos (eram sete, Timor-Leste entrou depois). Como não andasse, inventaram em 1998 um protocolo modificativo que dispensava a data de início, mas mantinha a obrigatoriedade de todos ratificarem. Também não resultou. Então, com o descaramento que a época permitia, fizeram em 2004 um segundo protocolo onde se dizia que “[o AO90] entrará em vigor com o terceiro depósito de instrumento.” Vitória!
Vitória de quem? De três sobre oito? Este foi o ponto de partida para uma vasta recolha de assinaturas com vista à revogação, não do AO90, como por aí se afirma, mas sim da resolução que aprovou o segundo protocolo modificativo. Iniciativa à qual (declaração de interesses) me associei como cidadão, por razões óbvias para quem lê estas crónicas. “Ah, mas a resolução foi aprovada a pedido do Governo!”, alegam. “O Parlamento só a votou.” Exactamente. É o que diz a Constituição. Um belo pingue-pongue entre os artigos 197.º (compete ao Governo “negociar e ajustar convenções internacionais”), 161.º (compete à Assembleia da República “aprovar os tratados (…) bem como os acordos internacionais que versem matérias da sua competência reservada ou que o Governo entenda submeter à sua apreciação”) e 167.º (“A iniciativa da lei e do referendo compete aos Deputados, aos grupos parlamentares e ao Governo, e ainda, nos termos e condições estabelecidos na lei, a grupos de cidadãos eleitores”).
Ler mais aqui:
O Acordo Ortográfico ainda é uma caixinha de surpresas
E neste pingue-pongue não há meios-termos: o Governo negocia os tratados internacionais (como o AO90); a Assembleia da República aprova-os, ratificando-os em forma de resolução, não de lei; e aos cidadãos, caso discordem da matéria aprovada, são concedidas duas vias, não mais: iniciativa legislativa ou referendo. Não há iniciativas “resolutivas” de cidadãos, só legislativas, e aqui não há (legalmente) volta a dar. Mas os serviços da Assembleia acharam o caso pacífico em 2019. Citemo-los: “O articulado do projeto [sic] de lei parece não colocar em causa a competência reservada do Governo para negociar e ajustar convenções internacionais [artigo 197.º da Constituição] caso em que o seu objeto [sic] estaria vedado pelo disposto na alínea c) do artigo 3.º da referida lei.”
Este “parece”, que não impediu a ILC-AO de ser aceite e registada como projecto, gerou dúvidas na Comissão de Cultura, que recorreu à Comissão de Assuntos Constitucionais, que por sua vez votou ontem um parecer sugerindo o contrário: cidadãos podem propor leis, sim senhor; mas como se trata de uma resolução, já não podem, isso só o Governo. Explicando às criancinhas: o Governo propõe e a Assembleia aprova; se querem que a Assembleia volte atrás numa resolução, vão pedir ao Governo que faça outra. Surreal, no mínimo. Porque se o Governo quisesse voltar atrás, já o tinha feito. Se alguém se mexe fora deste circuito morno, é porque dentro dele são raros os que atribuem qualquer importância a isto.
Ler mais aqui:
Acordo ortográfico? Revogar, claro!
O que sugerem, em troca? Mais uma petição! Só que de petições e recomendações está o inferno cheio, e nenhuma das apresentadas até hoje neste domínio surtiu qualquer efeito. Ainda anteontem, com um longo preâmbulo, o partido Os Verdes (PEV) apresentou um projecto de resolução (essa coisa que aos cidadãos está vedada) recomendando ao Governo que avalie os impactos do AO e que, “numa situação limite”, dê orientações para a sua suspensão, “acautelando as medidas necessárias de acompanhamento e transição.” Interessante. Mas antes, era bom que a Assembleia da República cumprisse a sua função de decisor, não de mero pedinte, e desse uso às responsabilidades que lhe cabem. Se pode fazer e aprovar resoluções a recomendar ou pedir, também poderá fazê-lo para decidir em matéria que lhe compete. Matar este assunto na secretaria, negando-lhe o plenário, poderá ser uma indignidade. Mas não o travará.»
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