O Ruy (com Y, que considero perfeito (porque não?) e elegante) esqueceu-se de mencionar um detalhe: em 1943, o Brasil adoptou um novo formulário ortográfico que, além de banir o y, o k, o w, os ph e th e as consoantes dobradas, baniu também (e a meu ver mal) as consoantes mudas que tinham uma função diacrítica, retirando a esses vocábulos a sua raiz, o seu significado e mudou-lhes a pronúncia.
Substituir o y por i, o k por q, o w por v, o ph por f, o th por t e as consoantes dobradas, ll e nn, por l e n, não retirou aos vocábulos a raiz e o significado deles, nem lhes mudou a pronúncia. Foi pura evolução.
Ruy Castro
Um saboroso texto de Ruy Castro (*)
02 Setembro 2018
«Durante quase três anos, no começo dos anos 1970, vivi numa espécie de semi-ilegalidade em Lisboa. Tinha morada e emprego fixos e trazia todos os documentos em ordem e os impostos em dia. Mas carregava um nome que, apesar de ser composto de apenas três letras, continha uma que estava fora da lei: o y. Naquela época, num país de quase dez milhões de habitantes como Portugal e com milhares de cidadãos chamados Rui, eu devia ser um dos poucos Ruy - ou único, já que não conheci outro. Não seria isto a me obrigar a andar de cabeça baixa pelas ruas do Bairro Alto, mas eu sempre percebia uma sensação de estranhamento ao passar a alguém um papel ou cheque assinado com aquele arcaico e defunto y, de que Portugal já se livrara havia décadas.
Sim, Portugal decretara o fim do y (e do k, do w, do ph, do th, dos mm, dos mn e dos nn) na sua grande reforma ortográfica de 1911 - que o Brasil, teimoso e desobediente, não seguira. Com isso, naqueles primórdios do século, o milenar Portugal já modernizara a sua língua enquanto o Brasil, que se julgava avançado e do Novo Mundo, continuara a escrever coisas como phonographo, Nictheroy e hypertrophia. Para piorar, condenara seus Ruys a um lado do Atlântico enquanto os Ruis ficavam do outro.
Bem, sendo brasileiro no Brasil ou fora dele, eu me sentia autorizado a levar o meu y para onde quer que fosse - afinal, estava escorado pelas leis de meu país. Mas, na verdade, não estava. Em 1943, o Brasil adotara um novo formulário ortográfico que finalmente incorporara muitas das determinações portuguesas de 1911, entre as quais o banimento do y, do k, do w, dos ph e th e das consoantes dobradas. Donde, de um instante para outro, haviam surgido no Brasil palavras como fonógrafo, Niterói e hipertrofia. E os Ruys, passado a nascer Ruis.
Pelo menos, era isso o que dizia a lei. Mas, como todos no Brasil sabemos, as leis são como vacina - umas pegam, outras não. Eu, por exemplo, que nasci em 1948, já sob a vigência do dito formulário ortográfico, ainda fui registado como Ruy. Como foi possível? Duas hipóteses: na ida ao cartório, meu pai - um legítimo Ruy de 1910 -, ao passar seu nome para mim, pode ter exigido que seu y fosse respeitado. Ou foi o próprio tabelião, talvez já idoso e cansado, que, habituado a registar Ruys, cravou-me displicentemente o y. E, sendo o Brasil como é, atravessei toda uma atribulada vida escolar, troquei várias vezes de documentos, comecei a assinar artigos em jornais ainda na adolescência e nunca fui solicitado a me tornar Rui.
E assim fomos levando, mas confesso que achava injusto viver com o meu nome na ilegalidade. Se o Brasil era um país cheio de gente legalmente registada como Kléber, Karen, Kátia, Wilson, Wallace e Washington, como o y, o k e o w podiam ser considerados ilegais?
Pois esse problema foi resolvido pela reforma ortográfica de 2009, que visou "unificar" a língua. Tanto quanto os portugueses, eu a detestei. E tanto que não a adotei - continuo até hoje a escrever como escrevia, e os revisores dos jornais e editoras para os quais trabalho que façam as correções, se quiserem. Nunca me conformei com o fim dos hífenes, dos tremas, de certos acentos agudos e com a aparição súbita na língua de palavras como autorretrato, antissocial, coirmão e coerdeiro (**).
Mas, numa coisa, tenho de ser grato à nefanda reforma. Ela trouxe de volta o y, o k e o w. Não sei o que motivou essa exumação, mas aí estão de novo, pimponas e lampeiras, as três letras que levaram quase um século excomungadas. Não acredito que, por causa disso, em Portugal, os novos Ruis nascerão Ruys. No Brasil, onde se encaixam yy em qualquer nome - o país abunda de Dayanes, Thyagos, Rycharlysons e outras cafonices -, tenho a certeza de que sim.
A volta do y poderá significar até um renascimento do nome Ruy entre os brasileiros. Porque, enquanto Portugal nunca deixou de produzir uma legião de Ruis, o nome Ruy no Brasil parecia estar se tornando um daqueles que em breve só seriam encontrados em cemitérios.»
Ruy Castro
(*) Escritor e jornalista brasileiro, é autor de, entre outros livros, Carnaval no Fogo - Crônica de Uma Cidade Excitante demais, sobre o Rio (Tinta-da-China).
Fonte:
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/02-set-2018/interior/a-volta-do-y-do-k-e-do-w-9785503.html
(**) A hifenização originada pelo AO90 é absurda e não segue uma lógica, e realmente gerou monstros ortográficos, como os que o Ruy destacou, e mais estas palavras horrorosas e espessas, deselegantes, difíceis de pronunciar e de destrinçar:
antirreligioso; contrarreforma; contrarregra; microrradiografia; radiorrelógio; autorradiografia; arquirrival; antirracional; contrarrazão; antirracial; alvirrubro; antirrevolucionário; anterrosto; suprarrenal; autosserviço; minissaia; autossuficiente; antissemita; antisséptico; extrassensorial; pseudossufixo; pseudossigla; multisserviço; contrassenso; colorretal; autossugestionável; entressafra; ultrassonografia; infraestrutura; extraescolar; autoinstrução; intrauterino; neoimpressionista; intraocular; megaestrela; multivitaminado; cardiopulmonar;
Esta é uma grafia bizzzzarrrra...
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