Antes que me esqueça
O Acordo Ortográfico de 1990 (doravante AO 1990) oscila entre a contradição, a imprecisão, o desregramento e a falácia.
É contraditório porque não se pode, por razões óbvias, reivindicar como objectivo primordial a unificação ortográfica da língua portuguesa privilegiando o critério fonético (ou da pronúncia) com um certo detrimento para o critério etimológico — se a origem das palavras é cientificamente identificável, a pronúncia varia em função da geografia, do contexto comunicativo, dos níveis social e cultural dos falantes, bem como das patologias da fala. Este é o equívoco do AO 1990 do qual decorrem todos os outros; na verdade, este engano particularmente pernicioso radica da primeira tentativa de normalização e simplificação da escrita da língua portuguesa estabelecida em 1911 no Formulário Ortográfico.
É impreciso porque as expressões «com um certo detrimento», «de certo modo», em «certa medida» e similares sucedem-se: em relação à hifenização, afirma-se que certos compostos, em relação aos quais se perdeu, em certa medida, a noção de composição, grafam-se aglutinadamente (ignore-se a cacofonia e ambiguidade desta frase, impróprias de um texto científico e normativo), exemplificando-se, de seguida, com o substantivo paraquedas. A esta imprecisão associa-se, também, uma falácia: paraquedas substituiu pára-quedas apenas em 1990, quando da publicação do AO 1990, motivo pelo qual a perda, em certa medida, da noção da sua composição noutro momento que não o supramencionado, além de assumidamente inexacta, radica, não da razão sobre a qual se constrói sem alteridade uma regra, mas de um pressentimento, um sentimento instintivo próprio de um texto ficcional e não de um documento normativo.
É desregrado porque normas, modelos, regras, não podem por significação ser facultativas, e o AO 1990 firma que determinadas sequências consonânticas conservam-se ou eliminam-se facultativamente quando se proferem numa pronúncia culta, quer geral, quer restritamente, ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento. Este desregramento evidencia uma outra falácia: sendo hoje consensual entre filólogos e linguistas a inexistência de uma norma culta geral — que, aliás, o AO 1990 também não assinala —, e admitindo-se restrita a de cada um, os escreventes podem decidir arbitrariamente pela utilização ou não do b das sequências bd e bt, do g da sequência gd, do m da sequência mn, do t da sequência tm, do c das sequências interiores cc, cç e ct, e do p das sequências interiores pc, pç e pt sem que isso constitua qualquer erro, contribuindo consequentemente o AO 1990 para a penalização da instrução e da correcção em benefício da iliteracia propagada por meio da aceitação e promoção da ignorância.
É simultaneamente desregrado e contraditório porque aceita duplas acentuações, designadamente em palavras que entende articularem-se nas pronúncias cultas [quais são, ninguém sabe, e o AO 1990 não as aponta] ora como aberta[s] ora como fechada[s], admitindo a utilização de acento agudo ou circunflexo — bebé ou bebê, bidé ou bidê, cocó ou cocô —, concorrendo consequentemente contra a unificação que determina como objectivo fundamental.
Outrossim, não se pode igualmente admitir ser facultativo assinalar com acento agudo as formas verbais de pretérito perfeito do indicativo, do tipo amámos, louvámos, para as distinguir das correspondentes formas do presente do indicativo (amamos, louvamos), também por razões que concernem à lógica, disciplina que determina as condições da verdade: a verdade é que ontem e hoje são tempos distintos, não podendo por isso ser sob qualquer argumento acompanhados da mesma forma verbal.
Por fim, se o AO 1990 falhou, pelas razões aludidas, à concretização de um dos seus propósitos fundamentais — constituir-se como um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa –, não tenho dúvidas de que cumpriu o seu outro desígnio, constituir-se como um passo importante para o prestígio internacional da língua portuguesa: prestígio, do latim praestigĭu, significa etimologicamente artimanha, malabarismo. Não houvessem preterido o critério etimológico, os autores do AO 1990 sabê-lo-iam e teriam, enfim, escolhido um vocábulo adequado a um documento de normas legais de uma língua em vez de um apropriado a um manual de artes mágicas.
Notas:
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