Sábado, 8 de Outubro de 2016

«As palavras e os (f)actos»

 

 

Um magnífico texto de Viriato Teles para se reflectir o estado caótico em que se encontra a Língua Portuguesa, que quem pode e manda continua a trucidar irracionalmente.

 

VIRIATO TELES.png

 

Texto de Viriato Teles  

(Jornalista e escritor)

 

30/09/2016 - 07:30

 

«Querer “unificar” a língua através da ortografia é um disparate incomensurável e só pode resultar no inverso do que pretende.

 

A ser verdade, como proclamava Fernando Pessoa, que a minha pátria é a língua portuguesa, não tenho grandes dúvidas de que, mesmo contra vontade, irei por certo terminar os meus dias como apátrida. Há pouco tempo, Alberto Pimenta – outro poeta maior a quem, como Pessoa, só tardiamente Portugal irá prestar tributo – vaticinava que “daqui a uma centena de anos (pode ser mais, pode ser menos), o português deverá ser uma língua meia morta”. A avaliar pelo que nos é dado ler, ver e ouvir, acho que esta premonição só peca por optimismo.

 

Quando, em Abril passado, o Presidente da República falou de “uma oportunidade para repensar” o impropriamente designado “acordo ortográfico”, não faltou quem achasse que, desta vez e por uma vez, o poder político pudesse ter, se não a sabedoria, pelo menos o bom senso de entender o mal que já foi feito pela imposição de uma norma que confunde e complica tudo o que se propõe simplificar. Um padrão que atropela e mutila a língua quando insiste em expurgá-la das raízes etimológicas, numa verdadeira manipulação genética sem outro sentido que não seja o do negócio, e mesmo esse só a curto prazo. Uma tolice que enfia o idioma numa jaula de inconsequências – afinal a mesma teoria-do-zoo que os comissários europeus usam com as nossas maçãs e as nossas vidas, com os resultados que se conhecem.

 

A questão da língua deveria, essa sim, ser considerada um “assunto de superior interesse nacional”, palavrosidade que tanto enche a boca de políticos e doutores, mas pela qual políticos e doutores tão pouco têm zelado. Não é por teimosia ou conservadorismo que há, felizmente, quem insista na insalubridade do “acordo” e na urgência de revertê-lo enquanto ainda é possível erradicar a moléstia. Porque ele é cientificamente mau, socialmente inútil e culturalmente nefasto. Não se trata de uma opinião, mas de factos, evidenciados pelos numerosos escritos e pareceres de reputados cientistas da língua, em Portugal e no Brasil. E não é coisa que passe com o tempo, como uma vulgar dor de cabeça. O que ficar disto será para sempre. Os efeitos, aliás, já se estão a sentir um pouco por toda a parte: nas escolas, nas empresas, nas instituições ou nos jornais, multiplicam-se as evidências de que o AO falhou em tudo e só complicou ainda mais aquilo que se propunha simplificar.

 

O problema do “acordo” é um problema de pessoas e é um problema de políticas. E de vaidades e interesses. Idealizado pelo lexicógrafo brasileiro António Houaiss com o apoio do colega português Malaca Casteleiro, o projecto nunca foi encarado como devia, isto é, como uma questão essencialmente linguística. Um hipotético “alargamento do mercado editorial” foi o argumento mais fortemente esgrimido pelos defensores da coisa, transformando uma discussão que deveria ser científica, num argumentário político-económico. E assim, demudado em trunfo politiqueiro, o “acordo” acabou por originar um problema político sério, e a sério. De que o poder-de-turno não sabe muito bem como sair sem perder a face.

 

Como era de se esperar, a fugaz esperança vislumbrada nas palavras presidenciais não foi além do soundbyte. Para ser diferente, era necessário que os agentes políticos tivessem consciência de que uma língua é muito mais do que o conjunto de palavras e expressões, códigos, sinais e regras que os dicionários e as gramáticas registam, com maior ou menor rigor. Uma língua, para mais uma língua já relativamente antiga como o português, tem uma história, um percurso e uma memória, é uma entidade viva sujeita às regras naturais da existência. E por isso não pode ser manipulada sem ter em conta tudo o que está nela e para além dela: a origem e razão de ser desta ou daquela palavra, o modo como é utilizada, os diferentes significados que pode ter num ou noutro lugar, etc., etc..

 

Os agentes políticos de que falo são, na realidade, quase todos, independentemente do lugar que ocupam, quer sejam ou tenham sido ou queiram vir a ser governo ou oposição. A leviandade com que a grande maioria deles olhou para este assunto é, aliás, reveladora da incultura geral que se espalhou pelos aparelhos partidários. É célebre a história de um secretário de estado (por acaso da Educação e, por acaso também, do CDS) que justificava os atentados frequentes à ortografia e à sintaxe, perpetrados pelo próprio no respectivo blogue pessoal, com o facto de utilizar um computador sem corrector ortográfico. E Cavaco ainda hoje não sabe quantos cantos têm Os Lusíadas, mas isso não o impediu de ocupar sucessivamente os cadeirões de São Bento e de Belém durante duas dezenas de anos. Não faltam, aliás, exemplos de ministros, secretários ou directores-gerais incapazes de alinhar correctamente duas frases. E poderíamos continuar por aí afora, pois que até professores, jornalistas e escritores contribuem com quotas significativas para o estado de apedeutismo geral a que o país chegou.

 

Particularmente desconfortável é o facto de, em todo o espectro político português, apenas um partido de extrema-direita ter assumido uma posição frontal contra o “acordo”. Fê-lo, é claro, pelas piores razões, como se a língua portuguesa fosse propriedade dos portugueses, quando na verdade pertence por igual a brasileiros, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos, santomenses, guineenses, timorenses. E aos portugueses também, é claro. A língua é de todos eles, de todos nós, e também dos outros, luso-descendentes ou simples admiradores e cultivadores deste nosso jeito de dizer e de escrever. Com mais ou menos colorido tropical, o português cresceu e desenvolveu-se ao longo de nove séculos, moldou-se e acrescentou-se, multiplicou-se em milhões de vocábulos, e tornou-se a terceira língua ocidental mais falada no mundo, logo após o espanhol e o inglês.

 

E é por isso que querer “unificar” a língua através da ortografia, abastardando a etimologia e impondo umas absurdas e inexplicáveis “facultatividades”, é um disparate incomensurável e só pode resultar no inverso do que pretende. Hoje já se escrevem em Portugal, pelo menos três variantes do idioma: as de antes e depois do “acordo”, e a dos que misturam as duas e lhes acrescentam até palavras que não estão em nenhum deles. O português que se falará e escreverá dentro de cem anos será, seguramente, um em Portugal, outro no Brasil, outro ainda em Angola, e em Moçambique, até talvez em Timor. E então? Até pode acontecer que, nessa altura, o português seja já uma língua meia morta, como diz Pimenta, mas isso acontecerá independentemente de haver ou não acordo ortográfico.

 

Creio mesmo que esse risco é bem maior com um acordo desta (contra) natureza do que sem ele – e os casos do inglês ou do espanhol, que vivem desafogadamente há séculos sem nenhum espartilho, são em grande medida prova disso. As línguas, como as pessoas, nascem e crescem, vivem e morrem. E reproduzem-se, também. Se, e quando, o português vier a ter o destino do latim, outras línguas aparecerão em seu lugar, e só poderemos dizer como o engenheiro Guterres, “é a vida”. Até lá, é nossa obrigação tratá-la com rigor e carinho, e fazer o que for possível para que continue a desenvolver-se harmoniosa e naturalmente, única garantia de que poderá sobreviver-nos por muitos séculos.

 

Só assim, também, sobreviveremos como povo, já que a língua é a essência da nossa identidade cultural. Ou seja, da nossa vida – que não deveria estar à mercê de tão pequenas vaidades e tão grandes ignorâncias. Porque a língua é nossa, a única coisa realmente nossa que temos, mas pertence também aos que nos precederam e aos que estão para vir. Uns e outros merecem e exigem que a cuidemos.»

 

Fonte:  https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/as-palavras-e-os-factos-1745626?page=2#/follow

 

publicado por Isabel A. Ferreira às 15:14

link do post | comentar | adicionar aos favoritos
partilhar

.mais sobre mim

.pesquisar neste blog

 

.Outubro 2024

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

.posts recentes

. Em Defesa da Ortografi...

. «A língua portuguesa amer...

. Intolerável: no tradutor ...

. AO90, segundo Jorge Lemos...

. Intolerável: no tradutor ...

. Acordo Ortográfico: «Mud...

. RTP Notícias: Luís Monten...

. João Barros da Costa dixi...

. Dra. Índigo Brasileira di...

. Em Defesa da Ortografia (...

.arquivos

. Outubro 2024

. Setembro 2024

. Agosto 2024

. Junho 2024

. Maio 2024

. Abril 2024

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Agosto 2023

. Julho 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Março 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Outubro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Maio 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Fevereiro 2021

. Janeiro 2021

. Dezembro 2020

. Novembro 2020

. Outubro 2020

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Abril 2020

. Março 2020

. Fevereiro 2020

. Janeiro 2020

. Dezembro 2019

. Novembro 2019

. Outubro 2019

. Setembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Março 2019

. Fevereiro 2019

. Janeiro 2019

. Dezembro 2018

. Novembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Julho 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Abril 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Janeiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Outubro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Novembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Abril 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

.Acordo Ortográfico

A autora deste Blogue não adopta o “Acordo Ortográfico de 1990”, por recusar ser cúmplice de uma fraude comprovada.

. «Português de Facto» - Facebook

Uma página onde podem encontrar sugestões de livros em Português correCto, permanentemente aCtualizada. https://www.facebook.com/portuguesdefacto

.Contacto

isabelferreira@net.sapo.pt

. Comentários

1) Identifique-se com o seu verdadeiro nome. 2) Seja respeitoso e cordial, ainda que crítico. Argumente e pense com profundidade e seriedade e não como quem "manda bocas". 3) São bem-vindas objecções, correcções factuais, contra-exemplos e discordâncias.

.Os textos assinados por Isabel A. Ferreira, autora deste Blogue, têm ©.

Agradeço a todos os que difundem os meus artigos que indiquem a fonte e os links dos mesmos.

.ACORDO ZERO

ACORDO ZERO é uma iniciativa independente de incentivo à rejeição do Acordo Ortográfico de 1990, alojada no Facebook. Eu aderi ao ACORDO ZERO. Sugiro que também adiram.
blogs SAPO