Sexta-feira, 30 de Outubro de 2015

«Por favor, desliguem a máquina!»

 

Um excelente e elucidativo texto escrito em 9/6/2013 por António de Macedo, porém, actualíssimo.

Em Portugal é assim… Os anos vão passando… os portugueses cultos vão reclamando… os governantes fazendo orelhas moucas… e tudo continua teimosa e nesciamente na mesma: um atraso de vida!

Um texto para ler com atenção e partilhar e enviar aos irresponsáveis «acordistas».

 

António De Macedo.jpeg

 

Por António de Macedo

 

«Os apoiantes do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) acusam frequentemente os opositores de serem «Velhos do Restelo», avessos à «evolução» da língua, saudosistas de se escrever «pharmácia» com ph, e outros doestos do mesmo teor. Equívocos grossos por parte de quem fala de coisas que não conhece ou conhece mal.

 

Comecemos pela alusão ao «Velho do Restelo» (Canto IV de “Os Lusíadas”, estâncias 94 a 104). A sua identificação com mentalidade retrógrada, conservadorismo, pessimismo e afins resulta do desconhecimento do que realmente se lá encontra, ou então de uma leitura pela rama. Dou a palavra a quem sabia muito mais disto do que eu, o pensador António Telmo, que nos seus livros (p. ex. “Congeminações de um Neopitagórico”) nos explica que «o Velho do Restelo não significa aquilo que vulgarmente se diz significar, e tanto se tem repetido que quase se tornou proverbial», acrescentando mais adiante: «uma espécie de superego do homem, de censor ou de censurador de quanto nele aspira à inovação pelo heroísmo, à criação pelo imprevisível…»

 

Sendo um velho «venerando», quer dizer, que «deve ser venerado», e «com um saber de experiência feito», na verdade alerta-nos para os perigos a fim de podermos superá-los e vencê-los, não para fugirmos a eles, numa alusão à antiga máxima alquímica de que as provas que defrontamos não são obstáculos, mas desafios — curiosa máxima que até os políticos mais rasteiros já papagueiam quando tentam justificar os apertos orçamentais (e outros…) apregoando que as dificuldades são «oportunidades»…

 

Por outro lado, e passando ao tópico seguinte, se quisermos ser minuciosos concluiremos que os verdadeiros «saudosistas» do «português antigo» (?) não são os que suspiram pelo regresso à tal «pharmácia» com ph, situação que ocorreu apenas entre o séc. XVII e 1911, em que a grafia da língua portuguesa se caracterizou por um pedantismo renascentista e depois iluminista, de influência francesa, adoptando uma escrita que procurava reproduzir as transliterações latinas de palavras gregas, sobretudo em certos termos eruditos ou mitológicos, como «philosophia», «theologia», «chimera», «symmetria», etc..

 

O alfabeto do latim clássico não dispunha de letras que equivalessem aos sons de algumas letras gregas, que, com muito boa vontade, se poderiam representar por um “p” aspirado (ph), por um “t” aspirado (th), por um “c” (duro) aspirado (ch) e por um “y” com pronúncia aproximada do “u” francês.

 

Mas esta foi uma fase intercalar: nos primeiros séculos da língua portuguesa (séc. XII e até mais ou menos sécs. XVI-XVII) a grafia era uma tentativa de compromisso entre a fonética e a etimologia, cheia de erros e de irregularidades quando vista à luz da ciência linguística moderna, mas que ia acompanhando o evoluir da língua falada, em relativo paralelismo com o que sucedia com o castelhano.

 

Consultando as edições antigas das cantigas trovadorescas medievais, passando pelos autos de Gil Vicente e até à 1.ª edição de “Os Lusíadas”, ou seja, desde aproximadamente 1200 até 1572, praticamente não encontramos termos com ph, th, etc. Na 1.ª edição de “Os Lusíadas” é normal depararmos com grafias como «ninfas», «profeta», «cristalino», «fantasia», «Olimpo», etc., palavras que na posterior fase cultista passaram a escrever-se «nymphas», «propheta», «crystallino», «phantasia», «Olympo», etc. É certo que na epopeia de Camões também aparecem coisas como «triumphante» ou «hemispherio», mas não podemos esquecer que nos finais do século XVI já se esboçava a transição da norma tradicional portuguesa para a norma do cultismo de ascendência renascentista.

 

A fase cultista acentuou-se sobretudo a partir da revolução de 1640 e correlativo desvincular de Portugal da coroa espanhola. A moda da «orthographia etymológica» deveu-se, como disse, ao fascínio dos eruditos portugueses pelo Renascimento clássico e pelo Iluminismo, mas sobretudo por reacção xenofóbica anticastelhanista, para nos demarcarmos da grafia do antigo dominador, sendo essa uma outra maneira de afirmar a nossa independência e a nossa distância em relação a Espanha.

 

Com efeito, e apesar da tentativa da Real Academia Española, em 1741, para se utilizar o grupo “ph” em certas palavras de origem grega, essa ideia não foi por diante e os espanhóis mantiveram a simplificação tradicional: onde os portugueses, no séc. XVIII, escreviam «philosophia», os espanhóis continuaram a grafar «filosofía».

 

Em Portugal a grafia «cultista» manteve-se até à reforma ortográfica de 1911, que, com o pretexto da simplificação para obviar o gritante analfabetismo português, no fundo acabou por regressar, em termos modernos, à nossa real matriz de escrita. Os ajustes de 1931 e 1945 mais não fizeram do que «aperfeiçoar» (enfim, sem ironia e dentro do possível…) o espírito lusitanizante de 1911 — nunca devendo esquecer-nos que uma ortografia «idealmente perfeita» não existe, o máximo que se pode conseguir é um compromisso inteligente entre etimologia e fonética, coisa que, em minha humilde opinião, alcançou um relativo limite, «menos mau», com a convenção de 1945. Ir mais longe em termos de simplificação pró-foneticista é perigoso, veja-se o resultado catastrófico do abortivo AO90, que na salgalhada em que está a enredar-se acaba por ser tudo menos inteligente.

 

Finalmente a guerrilha da «evolução». Que a língua portuguesa evoluiu, no sentido biológico do termo, desde as suas origens até hoje, não surpreende, porque uma língua é um organismo vivo e vai passando por sucessivas mudanças naturais ao longo do tempo. É normal que a representação gráfica das progressivas alterações fonéticas não se processe com a mesma rapidez destas: a grafia, com o correr dos tempos, tende a ser uma espécie de “signe de reconnaissance”, e com o avançar da cultura, a sua permanência gráfica pode tornar-se um factor importante de identificação visual.

 

Por sua vez uma «mutação» é uma mudança brusca dos constituintes genéticos de um organismo, podendo dar origem a indivíduos bastante diferentes dos da espécie onde ocorre a mutação. Pedindo desculpa aos especialistas pela maneira simploriamente profana como falo deste complexo assunto, digamos que as mutações podem ser naturais ou induzidas, e ainda benéficas ou desfavoráveis. No caso das mutações desfavoráveis, os organismos resultantes, não sendo viáveis, geralmente acabam por se extinguir, por selecção natural.

 

O que se passa com o AO90 é que se trata de um «organismo» que não surgiu naturalmente, foi induzido artificialmente de uma maneira violenta e brutal, tendo gerado um «ser» abortivo — ou seja, trata-se de uma MUTAÇÃO desfavorável, não de uma EVOLUÇÃO natural, basta observar os erros, as incongruências, os descalabros e as desorientações provocados no Ensino e em diversas áreas culturais, e auscultar as queixas de professores e alunos sobre o calamitoso estrago causado pela imposição do AO90.

 

Ora, quando um organismo não é viável, como por exemplo um doente terminal em estado vegetativo, a ciência médica pode fazê-lo sobreviver por «tecnologia clínica», ligando-o a uma máquina que lhe prolonga a agonia artificialmente.

 

No caso da mutação desvantajosa do AO90, verificamos que o seu deplorável estado vegetativo somente se mantém porque foi ligado à máquina por «tecnologia política», e a sua falsa vida, prolongando-se, está a proporcionar uma agonia intolerável aos que lhe sofrem os efeitos.

 

Senhores políticos, acabem com o sofrimento do doente e dos próximos que já não aguentam suportar-lhe o fardo. É um destes casos extremos em que a eutanásia se justifica.

 

Por favor, desliguem a máquina!»

Ex-cineasta, escritor, professor universitário

 

Fonte:

 https://www.publico.pt/2013/06/11/jornal/por-favor-desliguem-a-maquina-26644963

 

publicado por Isabel A. Ferreira às 19:08

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comentários:
De Maria João Brito de Sousa a 1 de Novembro de 2015 às 18:10
É-o, sem dúvida!

Foi com enorme prazer que me fui identificando com as suas perspectivas sobre esse absurdo que é o AO90!
De Isabel A. Ferreira a 1 de Novembro de 2015 às 18:14
Logo que haja governo, seria útil os milhares de portugueses, que são contra o AO/90, enviarem este e outros artigos do género para a Assembleia da República.

Falta bastante cultura aos deputados da nação, de outro modo não teriam aprovado tal ABERRAÇÃO.
De Maria João Brito de Sousa a 1 de Novembro de 2015 às 18:23
Estou - e devo continuar por algum tempo... - a fazer autênticos malabarismos por cada comentariozinho, mas já encontrei pessoas com esta área de especialização que por falta de sensibilidade e até de "ouvido musical" subscrevem este abortivo e abortado desacordo...
Costumo dizer, um pouco a brincar, que não devia haver nenhum bom sonetista entre os que aprovaram esta aberração...
De Isabel A. Ferreira a 2 de Novembro de 2015 às 12:02
Não são poetas, nem escritores, nem portugueses de verdade aqueles que vendem a língua por um momento de glória...

Um dia cairão, e ficarão para a História simplesmente como traidores...
De Maria João Brito de Sousa a 3 de Novembro de 2015 às 10:58
Não costumo ser muito fundamentalista em nada, mas o que está em causa é demasiado abrangente e já tem consequências dificilmente reversíveis... esperemos que assim seja!
De Isabel A. Ferreira a 3 de Novembro de 2015 às 12:21
Há casos em que se justifica o fundamentalismo, que não é crime grave.

Mais grave é deixarmos que ASSASSINEM a nossa bela Língua Portuguesa.

Só a morte é irreversível.
Haja esperança.
Está em nós, que usamos as PALAVRAS, tornar este processo vergonhoso REVERSÍVEL.
De Maria João Brito de Sousa a 3 de Novembro de 2015 às 12:43
Sim, a resistência tem de se intensificar e cabe-nos a nós mantê-la bem viva e acesa, Isabel!
Pena tenho eu de estar crescentemente limitada a tantos níveis...
De Isabel A. Ferreira a 3 de Novembro de 2015 às 14:46
Não se sinta limitada.
Basta um computador para ficar ligada à luta.
A luta também se faz com PALAVRAS dirigidas aos governantes, responsáveis por esta afronta à portugalidade.

Mas temos de ser muiiiiiitos....

Não pouse as armas, ou seja, as palavras...
De Maria João Brito de Sousa a 3 de Novembro de 2015 às 14:53
Não as pousarei, nem mesmo com o computador todo desconfigurado, com o "rato" morto e com os iões de cálcio, potássio, magnésio, cloro e sódio meio desaparecidos...

Não calarei as palavras!
De Isabel A. Ferreira a 3 de Novembro de 2015 às 15:35
Não deixaremos que MATEM a nossa Língua!
De Maria João Brito de Sousa a 3 de Novembro de 2015 às 16:19
... nos meus poemas não entra este disparatado e redutor desacordo!

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