Um excelente texto da Escritora e Professora Catedrática Teolinda Gersão, publicado no Facebook em 06 de Abril de 2018.
Se fosse escrito hoje, o ensino da Língua Portuguesa, que neste texto foi exposto como sendo mau, teria de ser revisto e qualificado de péssimo, porque, entretanto, as coisas degradaram-se de tal modo, que até os professores (salvo raras excePções) já não sabem ensinar ou sequer escrever correCtamente a Língua que, oficialmente, continua a ser a Portuguesa, assente na grafia proposta pela Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945 (*), que entrou em vigor no nosso país através do Decreto N.º 35 228, de 8 de Dezembro de 1945, o qual não foi revogado, logo, continua em vigor. Regra básica que qualquer estudante de Direito, do primeiro ano, sabe, e o cidadão comum, mais informado, também sabe.
E é este Decreto que dá validade jurídica ao facto de o Ensino da Língua Portuguesa dever ser efectuado segundo a grafia de 1945, delegando, assim, para a ilegalidade, a aplicação do AO90, em Portugal.
«VOU CHUMBAR A LÍNGUA PORTUGUESA»…
Este texto é da autoria de Teolinda Gersão
Escritora, Professora Catedrática aposentada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
(Escreveu-o depois de ajudar os netos a estudar Português, e colocou-o no Facebook).
"Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, “em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito. “O Quim está na retrete”: “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.
No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados; almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram, “algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa. No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?
A professora também anda aflita. Pelo visto, no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer, dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)
Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.
E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impor a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.
E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática?
Respondo: «Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito».
João Abelhudo, 8º ano, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática
Fonte:
https://www.facebook.com/pedrovalcerto/posts/1826140224076035
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(*) A Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945 (Acordo Ortográfico de 1945) foi assinada em Lisboa em 6 de Outubro de 1945, entre a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras. Este acordo, ligeiramente alterado pelo decreto-lei n.º 32/73, de 6 de Fevereiro, estabeleceu as bases da ortografia portuguesa para todos os territórios portugueses (que à data do acordo e até 1975 compreendiam o território europeu de Portugal e as províncias ultramarinas portuguesas - na Ásia e África), e que até aos dias de hoje está em vigor. No Brasil, o Acordo Ortográfico de 1945 foi aprovado pelo decreto-lei 8.286 de 5 de Dezembro de 1945, contudo, o texto nunca foi ratificado pelo Congresso Nacional, e os Brasileiros logo o abandonaram para continuar a regular-se pela ortografia do Formulário Ortográfico de 1943. O texto foi posteriormente revogado pela lei 2.623, de 21 de Outubro de 1955, passados 10 anos.
Portugal anda vai muito a tempo de dar o dito pelo não dito (como o fez o Brasil, com o AO45), reconhecer o gravíssimo erro que foi adoPtar a grafia da ex-colónia sul-americana, e mandar repor a grafia portuguesa, nas Escolas portuguesas, e em todas as instituições estatais e privadas, fazendo, desde modo, cumprir a LEI VIGENTE.
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