A nossa Língua Portuguessa era tão linda, tão elegante, tão graciosa, tão delicada, tão harmoniosa, e, de uns tempos para cá, encheram-na de monos linguísticos que, aliados ao acordês e à pirosa linguagem inclusiva, a desfeiam, a engordam, a desfiguram, a endurecem, a desarmonizam, a tal ponto que, se fosse música, dir-se-ia saída de um trombone baixo, completamente desafinado. Um verdadeiro PAVOR!
Fiquemo-nos com um excelente texto do Dr. António Bagão Félix, que nos fala de uma linguagem cada vez mais infestada de modismos e palavras “doutorais.
Isabel A. Ferreira
Por António Bagão Félix
«EM PORTUGUÊS
n.43
𝑀𝑖𝑛ℎ𝑎 𝑝𝑎́𝑡𝑟𝑖𝑎 𝑒́ 𝑎 𝑙𝑖́𝑛𝑔𝑢𝑎 𝑝𝑜𝑟𝑡𝑢𝑔𝑢𝑒𝑠𝑎
Fernando Pessoa
Há até quem pense que quanto maior for a sua pseudo complexidade, mais subirá no “elevador intelectual”. Certamente baseando-se numa frase que, por vezes, surge no imaginário do comum mortal: “Não percebi nada do que aquela pessoa disse, mas gostei. Falou muito bem”.
Não me refiro agora à prática recorrente de se juntarem, a torto e a direito, palavras em língua estrangeira (sobretudo, em inglês), de que já aqui tratei. Como, amiúde, tenho ouvido nas televisões, isso já é um “déjà vu”, erradamente pronunciado à portuguesa como “𝑣𝑢”, em vez de “𝑣𝑖́𝑢”.
Limito-me a imaginar uma amostra - obviamente caricatural - no que ao “economês-politiquês” diz respeito e que por aí grassa, para gáudio de alguns egos.
“No sector financeiro é imperativo desalavancar actividades para prevenir novas imparidades. No Estado, importa ventilar e priorizar blocos de despesa, para criar almofadas que assegurem a consolidação fiscal interministerial e interdepartamental. O acesso à pensão de velhice fica dependente de uma reponderação do factor de sustentabilidade, que permita descontar o efeito paramétrico das variáveis endógenas em jogo. No sector público, haverá que agilizar os incumbentes mais resilientes e dinamizar as sinergias, bem como potenciar a fileira industrial e de inovação de processos e produtos. A janela de oportunidade para criar valor é a de um novo paradigma impactante para os bens transaccionáveis. Tendo em conta que a solução não pode, por ora, ser encontrada num regime monetário intra-europeu, que evite uma reestruturação ou um evento de crédito da dívida fundada, há que analisar o efeito de medidas monetárias não convencionais, para evitar certos desequilíbrios sistémicos e assegurar o valor facial dos colaterais. Por fim, será concertada uma agenda de inclusão económica (também na perspectiva de género), na qual se alavancará o reforço constante da resiliência do país”.
Tudo isto, evidentemente “em sede de” qualquer coisa.
Percebido? Ou será preciso juntar uma boa dose do intragável e manhoso "eduquês"?
Se a esta linguagem adicionarmos meia-dúzia de expressões em inglês para português ver e três siglas incompreensíveis para quase toda a gente, atingimos o zénite da perfeita comunicação para … não se entender.
Evidentemente que as leis são complexas do ponto de vista técnico. Mas, de há muitos anos a esta parte, acentua-se a legislação prolixa, opaca, labiríntica, ambígua até, cheia de “gorduras” (leia-se: redundâncias e adjectivação “robusta” até fartar).
Os próprios preâmbulos dos diplomas legais deveriam constituir uma oportunidade para, de uma maneira simples, clara e didáctica, descodificar as densas tecnicalidades das normas jurídicas.
Mas não. Basta dar uma olhadela por um qualquer dia do jornal oficial para perceber o deleite do legislador em complicar ainda mais o que, pela natureza do assunto, já é complicadíssimo. Está-lhe na massa do sangue e escorre pelos poros, num fluir interminável.
Para não vos maçar muito, ilustro com um sugestivo naco do extenso preâmbulo do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Dec. Lei nº 4/2015, de 7 de Janeiro:
“𝑀𝑒𝑟𝑒𝑐𝑒 𝑟𝑒𝑎𝑙𝑐𝑒 𝑎 𝑝𝑟𝑒𝑣𝑖𝑠𝑎̃𝑜 𝑑𝑎 𝑝𝑜𝑠𝑠𝑖𝑏𝑖𝑙𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒 𝑑𝑎 𝑐𝑒𝑙𝑒𝑏𝑟𝑎𝑐̧𝑎̃𝑜 𝑑𝑒 𝑎𝑐𝑜𝑟𝑑𝑜𝑠 𝑒𝑛𝑑𝑜𝑝𝑟𝑜𝑐𝑒𝑑𝑖𝑚𝑒𝑛𝑡𝑎𝑖𝑠 (𝑎𝑟𝑡𝑖𝑔𝑜 57.º). 𝐴𝑡𝑟𝑎𝑣𝑒́𝑠 𝑑𝑒𝑠𝑡𝑒𝑠, 𝑜𝑠 𝑠𝑢𝑗𝑒𝑖𝑡𝑜𝑠 𝑑𝑎 𝑟𝑒𝑙𝑎𝑐̧𝑎̃𝑜 𝑗𝑢𝑟𝑖́𝑑𝑖𝑐𝑎 𝑝𝑟𝑜𝑐𝑒𝑑𝑖𝑚𝑒𝑛𝑡𝑎𝑙 𝑝𝑜𝑑𝑒𝑚 𝑐𝑜𝑛𝑣𝑒𝑛𝑐𝑖𝑜𝑛𝑎𝑟 𝑡𝑒𝑟𝑚𝑜𝑠 𝑑𝑜 𝑝𝑟𝑜𝑐𝑒𝑑𝑖𝑚𝑒𝑛𝑡𝑜 𝑞𝑢𝑒 𝑐𝑎𝑖𝑏𝑎𝑚 𝑛𝑜 𝑎̂𝑚𝑏𝑖𝑡𝑜 𝑑𝑎 𝑑𝑖𝑠𝑐𝑟𝑖𝑐𝑖𝑜𝑛𝑎𝑟𝑖𝑒𝑑𝑎𝑑𝑒 𝑝𝑟𝑜𝑐𝑒𝑑𝑖𝑚𝑒𝑛𝑡𝑎𝑙 𝑜𝑢 𝑜 𝑝𝑟𝑜́𝑝𝑟𝑖𝑜 𝑐𝑜𝑛𝑡𝑒𝑢́𝑑𝑜 𝑑𝑎 𝑑𝑒𝑐𝑖𝑠𝑎̃𝑜 𝑎 𝑡𝑜𝑚𝑎𝑟 𝑎 𝑓𝑖𝑛𝑎𝑙, 𝑑𝑒𝑛𝑡𝑟𝑜 𝑑𝑜𝑠 𝑙𝑖𝑚𝑖𝑡𝑒𝑠 𝑒𝑚 𝑞𝑢𝑒 𝑒𝑠𝑡𝑎 𝑝𝑜𝑠𝑠𝑖𝑏𝑖𝑙𝑖𝑑𝑎𝑑𝑒 𝑒́ 𝑙𝑒𝑔𝑎𝑙𝑚𝑒𝑛𝑡𝑒 𝑎𝑑𝑚𝑖𝑡𝑖𝑑𝑎.
𝑁𝑜 𝑛.º 2 𝑑𝑜 𝑎𝑟𝑡𝑖𝑔𝑜 57.º, 𝑎𝑙𝑒́𝑚 𝑑𝑒 𝑠𝑒 𝑑𝑒𝑖𝑥𝑎𝑟 𝑎𝑏𝑠𝑜𝑙𝑢𝑡𝑎𝑚𝑒𝑛𝑡𝑒 𝑐𝑙𝑎𝑟𝑜 𝑜 𝑐𝑎𝑟𝑎́𝑐𝑡𝑒𝑟 𝑗𝑢𝑟𝑖́𝑑𝑖𝑐𝑜 𝑑𝑜𝑠 𝑣𝑖́𝑛𝑐𝑢𝑙𝑜𝑠 𝑟𝑒𝑠𝑢𝑙𝑡𝑎𝑛𝑡𝑒𝑠 𝑑𝑎 𝑐𝑜𝑛𝑡𝑟𝑎𝑡𝑎𝑐̧𝑎̃𝑜 𝑑𝑒 𝑎𝑐𝑜𝑟𝑑𝑜𝑠 𝑒𝑛𝑑𝑜𝑝𝑟𝑜𝑐𝑒𝑑𝑖𝑚𝑒𝑛𝑡𝑎𝑖𝑠, 𝑐𝑜𝑛𝑓𝑖𝑔𝑢𝑟𝑎-𝑠𝑒 𝑢𝑚𝑎 𝑝𝑜𝑠𝑠𝑖́𝑣𝑒𝑙 𝑝𝑟𝑜𝑗𝑒𝑐𝑐̧𝑎̃𝑜 𝑝𝑎𝑟𝑡𝑖𝑐𝑖𝑝𝑎𝑡𝑖𝑣𝑎 𝑝𝑟𝑜𝑐𝑒𝑑𝑖𝑚𝑒𝑛𝑡𝑎𝑙 𝑑𝑎 𝑐𝑜𝑛𝑡𝑟𝑎𝑑𝑖𝑐̧𝑎̃𝑜 𝑑𝑒 𝑝𝑟𝑒𝑡𝑒𝑛𝑠𝑜̃𝑒𝑠 𝑑𝑒 𝑝𝑎𝑟𝑡𝑖𝑐𝑢𝑙𝑎𝑟𝑒𝑠 𝑛𝑎𝑠 𝑟𝑒𝑙𝑎𝑐̧𝑜̃𝑒𝑠 𝑗𝑢𝑟𝑖́𝑑𝑖𝑐𝑜-𝑎𝑑𝑚𝑖𝑛𝑖𝑠𝑡𝑟𝑎𝑡𝑖𝑣𝑎𝑠 𝑚𝑢𝑙𝑡𝑖𝑝𝑜𝑙𝑎𝑟𝑒𝑠 𝑜𝑢 𝑝𝑜𝑙𝑖𝑔𝑜𝑛𝑎𝑖𝑠.”
Claro como a mais cristalina água...
Para citar uma lei mais recente (Lei 27/2021, de 17 de Maio), com o título pomposo de “Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital”, escolhi um ponto (artigo 6º n. 2), que tem suscitado muita querela política e que evidencia o seu grau de indeterminação adjectivante:
“𝐶𝑜𝑛𝑠𝑖𝑑𝑒𝑟𝑎-𝑠𝑒 𝑑𝑒𝑠𝑖𝑛𝑓𝑜𝑟𝑚𝑎𝑐̧𝑎̃𝑜 𝑡𝑜𝑑𝑎 𝑎 𝑛𝑎𝑟𝑟𝑎𝑡𝑖𝑣𝑎 𝑐𝑜𝑚𝑝𝑟𝑜𝑣𝑎𝑑𝑎𝑚𝑒𝑛𝑡𝑒 𝑓𝑎𝑙𝑠𝑎 𝑜𝑢 𝑒𝑛𝑔𝑎𝑛𝑎𝑑𝑜𝑟𝑎 𝑐𝑟𝑖𝑎𝑑𝑎, 𝑎𝑝𝑟𝑒𝑠𝑒𝑛𝑡𝑎𝑑𝑎 𝑒 𝑑𝑖𝑣𝑢𝑙𝑔𝑎𝑑𝑎 𝑝𝑎𝑟𝑎 𝑜𝑏𝑡𝑒𝑟 𝑣𝑎𝑛𝑡𝑎𝑔𝑒𝑛𝑠 𝑒𝑐𝑜𝑛𝑜́𝑚𝑖𝑐𝑎𝑠 𝑜𝑢 𝑝𝑎𝑟𝑎 𝑒𝑛𝑔𝑎𝑛𝑎𝑟 𝑑𝑒𝑙𝑖𝑏𝑒𝑟𝑎𝑑𝑎𝑚𝑒𝑛𝑡𝑒 𝑜 𝑝𝑢́𝑏𝑙𝑖𝑐𝑜, 𝑒 𝑞𝑢𝑒 𝑠𝑒𝑗𝑎 𝑠𝑢𝑠𝑐𝑒𝑝𝑡𝑖́𝑣𝑒𝑙 𝑑𝑒 𝑐𝑎𝑢𝑠𝑎𝑟 𝑢𝑚 𝑝𝑟𝑒𝑗𝑢𝑖́𝑧𝑜 𝑝𝑢́𝑏𝑙𝑖𝑐𝑜, 𝑛𝑜𝑚𝑒𝑎𝑑𝑎𝑚𝑒𝑛𝑡𝑒 𝑎𝑚𝑒𝑎𝑐̧𝑎 𝑎𝑜𝑠 𝑝𝑟𝑜𝑐𝑒𝑠𝑠𝑜𝑠 𝑝𝑜𝑙𝑖́𝑡𝑖𝑐𝑜𝑠 𝑑𝑒𝑚𝑜𝑐𝑟𝑎́𝑡𝑖𝑐𝑜𝑠, 𝑎𝑜𝑠 𝑝𝑟𝑜𝑐𝑒𝑠𝑠𝑜𝑠 𝑑𝑒 𝑒𝑙𝑎𝑏𝑜𝑟𝑎𝑐̧𝑎̃𝑜 𝑑𝑒 𝑝𝑜𝑙𝑖́𝑡𝑖𝑐𝑎𝑠 𝑝𝑢́𝑏𝑙𝑖𝑐𝑎𝑠 𝑒 𝑎 𝑏𝑒𝑛𝑠 𝑝𝑢́𝑏𝑙𝑖𝑐𝑜𝑠”.
Narrativas há muitas, ó legisladores! Estamos entendidos?»
Fonte: https://www.facebook.com/antonio.bagaofelix
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