Quinta-feira, 16 de Agosto de 2018

«O Império Ortográfico»

 

Excelente texto, de Rui Ramos.

Porém, lamentavelmente indecifrável para o primeiro-ministro de Portugal e para o presidente da República Portuguesa.

 

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Rui Ramos

 

«O Acordo Ortográfico é, entre nós, a última manifestação de um paroquialismo colonial que se voltou contra si próprio: não podendo aportuguesar o Brasil, vamos abrasileirar Portugal.

 

O chamado “Acordo Ortográfico” tornou-se obrigatório esta semana – ou talvez não, pois que tudo nesta matéria é confuso. O Brasil ou Angola são, geralmente, as razões dadas para passarmos do acto ao ato. Mas o Brasil nunca mostrou demasiado entusiasmo ou pressa em partilhar uma mesma ortografia com Portugal – a nova grafia ainda nem sequer é obrigatória por lá. Quanto a Angola, continua a pensar. A parte portuguesa andou aqui à frente. Porquê?

 

Para perceber o Acordo Ortográfico, não basta recuar a 1990. É preciso, pelo menos, voltar a 1961. Nesse ano, o ditador Salazar, sem consultar o país, decidiu que Portugal desenvolvera com os povos extra-europeus sujeitos à administração portuguesa uma relação tão especial, que se justificava defender essa administração contra tudo e contra todos. Em 1974, a direcção revolucionária das forças armadas, também sem consultar o país, decidiu abdicar dessa administração e abandonar territórios e populações à ditadura e à guerra civil dos chamados “movimentos de libertação”. Não renunciou, porém, ao mito da relação especial. Essa relação teve um novo avatar enquanto “solidariedade anti-imperialista”, quando uma parte do MFA também quis ser “movimento de libertação”, para depois, em democracia, se redefinir como “comunidade de língua”.

 

Foi assim que, para além das independências, as oligarquias democráticas mantiveram o império numa versão linguística, a que era consentida por uma das “línguas mais faladas do mundo”. Alguém então se terá lembrado que Fernando Pessoa escreveu algures que “a minha pátria é a língua portuguesa”. Nunca importou a ninguém o que Pessoa quis dizer com a frase, logo entendida como o direito de qualquer português continuar a sonhar com mapas onde Portugal, sendo talvez pequeno, tem uma língua muito grande (“a sexta mais falada do mundo”, etc.). Acontecia, porém, que, entre Portugal e o Brasil, havia diferenças. Era preciso apagar esses vestígios de fronteiras, pelo menos no papel. Só assim (argumentava-se), a língua poderia emergir como única e grandiosa, reunindo o que se separara e impondo-se ao que resistia. No fundo, este acordo ortográfico é apenas o sintoma de uma descolonização mal resolvida.

 

Dir-me-ão: mas não temos ou não deveremos cultivar as tais relações especiais com os Estados onde o português é língua oficial? Sim, claro. Mas é importante, a esse propósito, não esquecer duas coisas. A primeira é que relações especiais não significam necessariamente ausência de diferenças e de distâncias. Estas diferenças e distâncias são aliás, no que diz respeito ao Brasil, muito mais profundas e irreversíveis do que convém admitir ao imperialismo linguístico. O português escrito no Brasil não se distingue apenas pela ortografia, mas pelo vocabulário e sobretudo pela sintaxe. A existirem, as relações especiais não deviam depender de quaisquer homogeneizações, irrelevantes ou impossíveis, mas de uma maior intensidade de comunicação, que habituasse portugueses e brasileiros às características de escrever e de falar uns dos outros. Ao reconhecer isso, há porém que reconhecer isto: não há assim tanto interesse de um lado e do outro num intercâmbio demasiado enérgico. As culturas que tradicionalmente mais fascinam portugueses e brasileiros não são as dos outros países de língua portuguesa, mas, por muitas razões, a das grandes potências do Ocidente, como os EUA. Este Acordo Ortográfico é, portanto, uma ilusão.

 

Mas há uma segunda coisa: a língua portuguesa não nos une apenas ao Brasil ou a Angola ou a Moçambique, mas também à Espanha, à Itália, à França, mesmo à Inglaterra e a outros países europeus ou de formação europeia. E a esse respeito, o Acordo Ortográfico tem um efeito perverso: afasta o português escrito dessas outras línguas europeias, com as quais tem raízes comuns, por via da rejeição, como em reformas anteriores, da grafia etimológica. A palavra acto assim escrita ainda sugere a palavra act para um inglês que não fale português. Ato, não. Num momento de integração europeia, optamos por uma grafia tropical, destinada a complicar a decifração do português pelos nossos vizinhos e parceiros mais próximos (como se já não bastasse a nossa pronúncia impenetrável). Não vou reclamar o regresso da philosophia. Mas é pena que tivéssemos deixado de ter uma palavra que evocasse imediatamente a philosophie francesa ou a philosophy inglesa. Era aliás assim que Pessoa gostava da sua pátria: “Philosopho deve escrever-se com 2 vezes PH porque tal é a norma da maioria das nações da Europa, cuja ortografia assenta nas bases clássicas ou pseudo-clássicas”.

 

O Acordo Ortográfico é, entre nós, a última manifestação de um paroquialismo colonial que se voltou contra si próprio: não podendo aportuguesar o Brasil, vamos abrasileirar Portugal, a ver se salvamos o mapa onde não somos pequenos. Mas é precisamente assim que parecemos e somos pequenos. A grandeza, hoje em dia, deveria consistir em tratar os países que têm o português como língua oficial sem fraternidades falsas, paternalismos deslocados, ou sujeições ridículas. E passa também por perceber que há muito mais populações, para além das que falam português, com quem temos uma história e um destino em comum.

 

O resultado de todos estes devaneios de imperialismo linguístico é que deixámos de ter uma ortografia consensual. O regime tenta agora compensar isso através do terrorismo escolar exercido sobre crianças e jovens. O que começou como um disparate acaba numa indignidade.»

 

Fonte:

https://observador.pt/opiniao/o-imperio-ortografico/

 

 

publicado por Isabel A. Ferreira às 16:28

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comentários:
De Paulo Martins a 20 de Agosto de 2018 às 01:51
Cara Isabel Ferreira, tenho vindo a seguir o seu blogue de algum tempo a esta parte. Saúdo o seu esforço e admiro a sua militância pela nossa língua portuguesa, que tem sido tão maltratada por políticos imbecis, e académicos? mentecaptos como Malaca Casteleiro, Telmo Verdelho, etc., que conceberam e defendem este AO90 aviltante e abjecto.
Embora já tenha tido vontade de manifestar esta opinião, não o fiz porque tanto quanto me é possível deduzir pelo conteúdo das suas publicações, não é adepta da ideia mas, aproveitando este post deixo então esta minha opinião ainda que lhe possa parecer descabida ou pior: a única forma, ou pelo menos a melhor maneira de ultrapassar os constrangimentos e o caos ortográfico trazido pelo AO90 (Anormalidade Ortográfica) é o regresso à "orthographia etymológica" anterior à reforma de 1911 (com congruentes alterações). Bem sei que pode parecer obtuso, mas desde 1911, a língua portuguesa tem vindo a ser despojada de uma enorme riqueza, e a ser depauperada continuamente até chegarmos a esta desilusão. Chega de descaracterizar a nossa língua. Julgo que seria a maior homenagem que poderíamos fazer a Fernando Pessoa e ao legado de tantos escritores portugueses. EU QUERO ESCREVER COMO SE ESCREVIA ANTES DE 1911.
Considero que com o AO 90 chegámos a uma categoria distinta de uma reforma ortográfica: o crime linguístico e cultural que tem denunciado incansavelmente! Daqui para a frente só falta acabar com a Língua Portuguesa e passar a chamar-lhe língua brasileira. Se nada for feito, lá chegaremos. Julgo que esta atitude radical acabaria com qualquer veleidade de voltar a cometer tamanho delito mascarado de reforma ortográfica.
A língua do Brasil já é distinta do Português há muito tempo e nada vai alterar isso. Deixem a língua brasileira seguir o seu próprio caminho, diferente da língua portuguesa, para o bem de todos nós, e acabem com os delírios megalómanos de afirmar que o português é falado por 250 milhões de pessoas.
Para terminar, saúdo a sua publicação, contudo, não deixa de ser bizarro da parte de Rui Ramos ter escrito esta diatribe incoerente, ainda que em 2015, pois este aderiu ao AO90, e o Observador, que R.R. co-fundou e onde escreve não poupa genuflexões ao horrendo AO90 desde que surgiu.
Bem haja.
De Isabel A. Ferreira a 23 de Agosto de 2018 às 16:28
Agradeço a gentileza das suas palavras.
Quanto à sua opinião no que respeita ao regresso à "orthographia etymológica" anterior à reforma de 1911, obviamente, não posso concordar. Seria um retrocesso tão nocivo quanto o ilegal Acordo Ortográfico de 1990.
A Língua Portuguesa evoluiu com a reforma de 1911. Foi perfeita? Não foi.
A Língua Portuguesa evoluiu ainda mais com a reforma de 1945 (ainda vigente). Foi perfeita? Também não foi. Mas podemos aperfeiçoá-la, sem a retalhar.
Não concordo quando diz que «desde 1911 a língua portuguesa tem vindo a ser despojada de uma enorme riqueza, e a ser depauperada continuamente até chegarmos a esta desilusão. Chega de descaracterizar a nossa língua». Porque o que tem vindo a acontecer à Língua Portuguesa desde 1911 é uma normal evolução, sem a descaracterizar. Quem a descaracterizou foram os Brasileiros, a tal ponto que criaram um dialecto, distanciado da Matriz greco-latina. A reformas de 1911 e 1945 redesenharam a escrita, sem a desenraizarem. Não vejo qualquer problema em grafar “ortografia etimológica”” em vez de “orthographia etymológica””, porque a pronúncia mantém-se, e apenas se substituiu os fonemas gregos, pelos correspondentes latinos, que fazem parte do Alfabeto Português. Também no que respeita ao U e V e consoantes duplas, escrevia-se SVPPLICAÇÃO, ma temos a letra U, para o som U, e ao retirarmos um P, a palavra continuou a ler-se suplicação, com o mesmo significado. Simplificou-se a grafia, mas a essência da palavra manteve-se.
Por isso, aqui houve evolução, sem deturpar. Sem descaracterizar.
O de 1945, seguiu os mesmos critérios, e simplificou-se mais no que respeita à acentuação, que não ficou perfeita, e, claro, existem algumas incongruências. Porém, nada que nos leve à descaracterização.
Portanto, discordando da sua opinião: a única forma, ou pelo menos a melhor maneira de ultrapassar os constrangimentos e o caos ortográfico trazido pelo AO90 não será retroceder na grafia, mas começar a ler todas as consoantes MUDAS. A única forma de resolver isto, e uma vez que o que está em causa no AO90 é a mutilação das palavras, é pronunciar os Cês e os Pês, onde eles são mudos: faCtor, direCtor, percePção, recePção, excePto, etc., etc., etc... Esta é a maneira mais simples de resolver a mixórdia ortográfica que anda por aí. E claro recuperar os acentos e os hífenes, onde eles foram retirados, e voltar ao trema, e a outros vÔos.
Quanto ao que diz sobre a língua brasileira, concordo com o senhor.
Fiquei, no entanto, muito surpreendida com o que diz do Rui Ramos. Desconhecia, por completo, essa baldeação dele. A ser verdade, não tem personalidade própria e será um bom pau-mandado. E obviamente, merece o meu repúdio.

Não leio o Observador, por ser um jornal que escreve mal. Prefiro o PÚBLICO. Mas vou confirmar o que diz.
Por fim, dada a balbúrdia que por aí vai, com cada um a escrever conforme lhe dá na telha, o senhor tem todo o direito de regressar à “orthographia etymológica” (repare: na mesma palavra o som I escrito de dois modos: um, à grega, outro, à latina)
Muito obrigada, por este seu comentário.

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