A escola, hoje, é um lugar terrível, tanto para alunos, como para professores, como para os pais. Para mim, foi-o igualmente, quando por lá andei, nos anos lectivos de 1973/74 (na Frei João de Vila do Conde) e 1974/75 (na Eça de Queiroz Póvoa de Varzim)
Eu já fui professora do Ciclo Preparatório (que hoje já não se chama Ciclo Preparatório), não por vocação, mas porque na altura, ainda Bacharel, não podia seguir o meu sonho: fazer prospecção arqueológica, até porque, por incrível que pareça, não havia nada para fazer nesse campo, num país cheio de ruínas.
Então, fui parar ao Ensino. Dei aulas apenas dois anos. No primeiro ano, não suportei as campainhas, os horários, o sistema, o programa de Português, e principalmente o de História, desadequado e falacioso. No segundo ano, acabaram com a História, e os programas eram experimentais e completamente idiotas. Além disto, que já era muito, não admiti a indisciplina que o 25 de Abril deixou entrar nas Escolas, em nome do conceito errado de liberdade.
O Presidente do Conselho Directivo da segunda escola em que dei aulas, confundia Liberdade com Indisciplina (e não foi só naquela escola), de modo que se implantou uma rebaldaria tal, que os alunos podiam fazer tudo e mais alguma coisa, dentro das salas de aula, e ai do professor que quisesse manter a disciplina: não podia repreender-se os alunos, não podia marcar-se faltas de castigo, não se podia mandá-los para fora da aula, se estivessem a ser inconvenientes, porque podíamos causar-lhes traumas irreversíveis; eles tinham de sentir-se livres, para poderem crescer em liberdade, enfim, confundindo-se alhos com bugalhos, plantou-se as sementes da bandalheira a que hoje se chegou.
Então acontecia que os alunos começaram a chegar à minha aula a mascar pastilhas elásticas; a pôr os pés em cima das mesas; a jogar à bola, simplesmente porque o professor X deixava (o professor X era o Presidente do Conselho Directivo). Tive de impor as minhas regras, e fui curta e grossa: «que fizessem o que quisessem nas aulas do professor X, mas nas minhas, nada de pastilhas elásticas, nada de pés em cima da mesa e nada de bolas. E quem não quisesse obedecer às minhas regras que saísse da sala, se faz favor». Aguardei. Ninguém saía. Guardavam as bolas. Punham as pastilhas elásticas no caixote do lixo, e sentavam-se.
A esse tempo (1975), e a uns dois meses do término do ano lectivo, eu andava grávida, já quase no fim da gestação, e numa das minhas turmas, havia um rapaz já espigadote e muito problemático, que não obedeceu à minha ordem de se sentar (uma vez que andava de carteira em carteira a perturbar os outros alunos). Em vez de ir sentar-se, aproximou-se de mim e disse: «Dou-te já um pontapé na barriga!». Mantive a calma, para não lhe dar um grande bofetão (como me apetecia) e disse-lhe para se retirar imediatamente da sala. Fez-me frente. Então agarrei-o por uma orelha e levei-o para fora da sala até ao meio do corredor, e deixei-o ali, e nada disse. O miúdo sai para a área exterior e apedreja a janela da sala de aula, quebrando o vidro, não ferindo ninguém, por um mero acaso.
O estardalhaço chegou aos ouvidos do professor X. O que foi, o que não foi, fui chamada ao gabinete. Porque não podia ser, porque mais isto e mais aquilo... Os meninos não podem ser expulsos da aula.
Então eu disse ao Senhor Presidente do Conselho Directivo da Escola: «O que não pode ser é eu ser ameaçada por um fedelho com treze ou catorze anos, e ficar-me por ali mesmo. E se ele me desse o pontapé na barriga? Não permito que ninguém, muito menos um aluno, me falte ao respeito; não permito indisciplina nas minhas aulas; e se estas minhas simples regras não tiverem lugar nesta escola, faça queixa de mim a quem quiser, ponha-me um processo disciplinar, ou ponha-me na rua, que eu saio imediatamente pela porta da frente, e não volto a entrar; e se tiver de ir lavar retretes para ganhar a vida, prefiro, a continuar num lugar onde não há disciplina nem autoridade – regras de ouro para o bom funcionamento de uma escola e para a boa educação dos alunos».
O Senhor Presidente do Conselho Directivo ficou estupefacto com o meu atrevimento. O mau ambiente instalou-se. Quem é que ela pensa que é? Ouvia-se. E eu era apenas a bacharel rebelde (nesse ano terminava a minha Licenciatura em História), que não abdicava da minha cidadania, e dos meus princípios e dos meus direitos. Aguardei o castigo. Porém, o castigo não veio.
Continuei, pois, a manter as minhas regras de disciplina com os meus alunos, e não haveria lei nenhuma que me obrigasse a aturar catraios indisciplinados. Dentro da sala de aula a autoridade era eu. Não abdiquei nem um milímetro da regra do respeito mútuo e das benfazejas disciplina e autoridade, dentro da sala de aula. Desse modo consegui manter as minhas turmas no bom caminho, e a partir de então nunca mais tive qualquer problema, no decurso das minhas aulas. Ao mínimo deslize, o aluno sabia que ia porta fora, gostasse ou não gostasse o Senhor Presidente do Conselho Directivo. Houvesse ou não houvesse leis a dizer o contrário. Nas minhas aulas a autoridade era eu. Se não fosse para ser eu, não me contratassem e pagassem para ENSINAR.
Para mim, o conceito de Ensinar não é apenas “despejar” matéria para cima dos alunos, como se despeja um copo de água. Por detrás do ensinar, há muitas outras regras que um Professor tem obrigação de apresentar aos seus alunos, como o respeito mútuo ou a disciplina, e até a higiene pessoal.
No final daquele ano lectivo, fui mãe, e decidi abandonar o Ensino, onde não havia lugar para mim, pois estaria sempre à margem das novas “filosofias libertárias”, aplicadas ao ensino pós-25 de Abril, que não se coadunavam, e tanto quanto sei, ainda não se coadunam, com o conceito de Educação.
Dediquei-me ao Jornalismo de causas. Não consegui mudar nada, até porque um palito não faz uma canoa. Mas o mais importante é não nos tornarmos cúmplices do desgoverno.
Pelo que se vê, depois desta minha desastrosa passagem pelo Ensino, as coisas foram piorando, cada vez mais.
E hoje, o que é a Escola, hoje? Um lugar de medo, onde não existe disciplina, nem autoridade, nem respeito por coisa nenhuma. Alunos atacam alunos. Alunos atacam professores. Professores atacam alunos. Os pais dos alunos atacam os professores. E o que acontece a uns e a outros? Nada, ou quase nada.
Certa vez, um menino chamado Leandro, vítima de bullying, atirou-se ao rio, por medo. Um professor de Música lançou-se ao Tejo, porque não aguentava as agressões dos alunos. Pergunta: então onde fica a disciplina e a autoridade?
A partir de um certo momento, os professores deixaram de se preocupar. Despejam a matéria, cujos conteúdos e programas são de bradar aos céus, alguns deles com atraso considerável (ex. o ensino da Matemática) em relação aos restantes países europeus; escrevem e falam mal a Língua Materna, que passou de língua íntegra a dialecto, sendo o índice de iliteracia bastante elevado; e ainda aguentam a falta de educação e indisciplina dos alunos. Chegam ao fim do mês, recebem o salário, que é o que mais interessa, e o resto que se lixe!
É urgente uma revolução no Ensino.
É urgente uma revolução na Educação.
É urgente uma revolução na Cultura.
É urgente a demissão dos ministros que tutelam o Ensino, a Educação e a Cultura, os quais não servem os interesses escolares, mas tão-só interesses subalternos, que não se encaixam nas exigências de um ensino de qualidade.
É urgente mudar de paradigma. É urgente um ensino escolar baseado no respeito mútuo e nos valores humanos mais primários, e no ensinamento-base de todos os ensinamentos: «Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti», uma sentença que já vem de um tempo sem tempo, adoptada na antiguidade por todos os filósofos, e que eu sempre fiz questão de passar aos meus alunos.
Ou as escolas portuguesas entram nos carris de um ensino de excelência, a começar pelo da Língua Portuguesa, a matéria-prima de todas as matérias escolares, retomando a grafia de 1945, ou Portugal estará irremediavelmente perdido para o futuro, porque os que estão a ser actualmente (de)formados por um ensino, uma educação e uma cultura assentes em areias movediças, e com um elevado insucesso e abandono escolares, não estarão à altura dos desafios, cada vez mais exigentes e competitivos, do tempo que aí vem.
Isabel A. Ferreira