Texto magnífico, publicado no jornal Público, no passado dia 05 de Dezembro, o qual foi-me enviado pelo autor, António Jacinto Pascoal, via-e-mail, e que aqui reproduzo com a sua autorização. (Isabel A. Ferreira)
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«O Acordo Ortográfico de 1990 (que não chegou, efectivamente, a sê-lo) procura unificar (nem há como camuflar a pretensão deliciosamente fascizante) vertentes que, naturalmente, tendem a afastar-se. Ou seja, ao AO90, para ser bom, só lhe faltam as qualidades…» (António Jacinto Pascoal)
«A língua e o sofá: o paraíso beatífico do acordo ortográfico»,
Por António Jacinto Pascoal (*)
Podemos fazer o que quisermos da língua, compará-la mesmo a um sofá, escarafunchar nela e estragá-la. Vamos lá a ver: alguém há por aí que estranhe o valor meramente instrumental da língua, como o do sofá de sala, servindo o conforto pessoal e o interesse pragmático do repouso? Descansar na língua (atente-se na poeticidade da expressão) assemelha-se, em registo idílico, ao primeiro olhar crítico (assim lhe chamou Eduardo Lourenço) do Criador, ao sexto dia, de pantufas no seu sofá e a olhar a Criação: concluiu que era bom. Reservou, então, o sétimo para o pleno remanso. É uma visão graciosa e singela da coisa. Está muito bem. As pessoas vão de mãos dadas e entendem-se. Um mundo perfeito. Se não fosse curto e indigente.
Num recente artigo de António Guerreiro (PÚBLICO, 22 de Novembro), e a propósito de Elon Musk, chama-se a atenção para o controlo da linguagem e a perspectiva instrumental que dela tem o magnata: a linguagem humana, como a entendemos, tornar-se-á obsoleta, poderá ser agregada a um sistema cibernético de inteligência artificial reduzido a funções básicas como a informação factual, cumprimento de regras, transmissão de ordens. Serão tempos em que a ficção científica deixará de ser ficção. Sabemos como as palavras são importantes e o modo como, sem termos disso plena consciência, transportamos prescrições ideológicas de raízes profundas, mesmo quando (e por isso também) elas são revisionistas e tendem à desafecção ideológica.
Há quatro anos, e a propósito do cinquentenário do general de Gaulle, Macron referiu-se-lhe como herói da resiliência francesa, mitigada assim a conotação político-imagética da resistência ao nazismo e ao fascismo. Hoje, em Portugal, os conceitos de racismo e xenofobia transmutam-se, pela palavra, em nacionalismo e proteccionismo, e o termo fascismo, na boca de muitos e em culto de programada naturalidade, alija, esconjurando-a, a carga depreciativa de outros tempos. Na esfera da linguagem, assiste-se à despolitização e dessincalização numa desvitalizada res publica, emancipada de enquadramentos colectivos transcendentes, pelo que os trabalhadores passam a colaboradores e o próprio trabalho, sob novas práticas organizacionais, espartilha-se na execução operacional e na gestão de informação e definição de objectivos, nesta nova relação ambígua entre indivíduo e sociedade. E, em boa parte do mundo, o vocábulo genocídio, conforme o perpetrador, assume ou não significação. Portanto, as palavras contam. Mas não somente como significados; contam ainda como significantes, tanto no plano do objecto sonoro como no da imagem visual gráfica. Esta última, a representação da “palavra”.
Quando pensamos em palavras, a sua materialidade percepciona-se melhor na escrita, porque é aí que elas se decompõem em morfemas, sendo mais prático, no plano da grafia, assinalar os efeitos fonéticos, a entoação, a força clítica por acção de consoantes ou vogais finais, mas também os valores semânticos de prefixos e sufixos (o valor avaliativo, o sentido pejorativo ou afectivo, e, portanto, também sociológico e ideológico). Mulherengo, por exemplo, será adjectivo capturado (e em vias de extinção) pelas novas vigilâncias da polícia de costumes da língua. Resumindo: as gramáticas e os dicionários são utensílios fundamentais, preservam práticas, registam admissões dialectais e sociolectais, estimulam a observação de regras (tanto para a língua-padrão como para falares e dialectos) e favorecem a elegância e a riqueza linguística. José Castro Pinto afirmou que “quem diz que um dia acabará a Gramática (como já ouvimos dizer) é porque ainda não compreendeu o que é uma Gramática”.
Isto nasce a propósito da ligeireza com que Isabela Figueiredo afirmou recentemente (Expresso on line, 14 de Novembro) que, no seu entender, não há para a língua regras, desde que todos nos entendamos. Segundo a escritora, “proteger a língua de maus-tratos é uma tarefa inglória”. Mas a ser assim, não importa desfigurar a língua, não importa permitir os termos “chulos” e os “vulgarismos” fora de contexto (imagine-se plasmados na Constituição) ou incluir cultismos em prosa popular, não importa ceder aos erros de concordância, não importa confundir – por inépcia – normas de variantes distintas do Português. Nada importa. Diria eu que não importa sequer haver gramáticas ou dicionários. E provavelmente filólogos e revisores e, entretanto, professores de língua. Que significa isto? Significa, suponho, que, quanto a si, se eu escrever “Azarmas ius barõins acinaladus” ou “Quero que tu lês e compreendes este texto”, não vai daí mal ao mundo, porque todos nos entendemos.
Nós, que nos opusemos ao Acordo Ortográfico de 1990, apelidados já de velhos do Restelo, Alencares, analfabetos do século XXI, velhotes obcecados, puristas da língua que tomam antiácidos, etc. (acrescentemos “autistas”, “neuróticos”, “casmurros”), e prontos para novos apodos, temos, pelo menos, duas coisas claras. Uma: as línguas são por natureza conservadoras – as suas mudanças raramente se produzem internamente, mas como resultado de tensões e pressões linguísticas externas ou produzidas por artificialismos, como os de reformas ortográficas que possam condicionar a modulação das palavras, o que, traduzido, liquida o argumento da vivacidade estuante das línguas (esse lugar-comum do organismo vivo). Imagine-se uma comunidade isolada do mundo, proceda-se a um estudo diacrónico da língua dos seus falantes e veja-se o que mudou ao longo de séculos. Duas: o Acordo Ortográfico de 1990 (que não chegou, efectivamente, a sê-lo) procura unificar (nem há como camuflar a pretensão deliciosamente fascizante) vertentes que, naturalmente, tendem a afastar-se. Ou seja, ao AO90, para ser bom, só lhe faltam as qualidades…
Nunca me imaginei um eugenista da língua com aspirações a higienismo militante. Leio, não raramente deliciado, Clarice Lispector, Luandino Vieira (angolano, que deveis saber português nascido de cá), Rui Knopfli, José Craveirinha, Corsino Fortes, Vasco Cabral, Alda do Espírito Santo, Fernando Sylvan. O que estranho, então, na posição de Isabela Figueiredo é a sua ambivalência em ser permissiva (ao ponto de ambicionar “estragar” a língua como quem estafa o sofá) e, logo depois, intransigente, quando se trata de deixar cada vertente do Português trilhar o seu caminho sem a rédea curta de um “acordo” ortográfico. Mas tudo isto vinha apenas a propósito de palavras.
E as minhas palavras, claro, dirigem-se àqueles que forem capazes de as entender. Ou quiserem, de facto, entendê-las.
António Jacinto Pascoal
(*) António Jacinto Pascoal (n. 1967, Coimbra) estreou-se em 1991, com Pátria ou Amor (Prémio da Associação Académica de Coimbra). Ensaísta, contista, poeta e fotógrafo. Editou nove livros de poesia, entre os quais As Palavras da Tribo (2005), Cello Concerto (2006) e Mover-se o Fogo (2018). Em 2018, publicou a colectânea de ficção narrativa Os Joelhos do Meu Pai e Outros Contos. No mesmo ano, editou o seu primeiro álbum fotográfico, Banda Euterpe: a Visão do Som e em 2019 co-realizou, com Inês Galocha Pascoal, o documentário Alunos. Em 2024, foi agraciado com menção pela associação polaca Arendi, em torno da poética de Herbert, e com a edição de dois contos, no prémio Luís Vilaça. Traduziu poemas de Violeta Parra e Ingibjörg Haraldsdóttir, além de uma peça para teatro de Gabriel García Márquez. Poemas seus estão traduzidos e editados em Inglês e Finlandês. É colaborador no jornal Público desde 2009, nas revistas Colóquio/Letras, Eufeme Magazine e Devir e, durante mais de uma década, encenou peças de teatro em escolas básicas e secundárias, entre as quais A Casa de Bernarda Alba de Federico García Lorca, Um Eléctrico Chamado Desejo de Tennessee Williams, John Gabriel Borkman de Henrik Ibsen e O Punho de Bernardo Santareno.
«Acredito que, em nome do lema “Pensar livremente”, honrado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, possamos vir a ser leitores ou público assistente de uma ou mais iniciativas sobre o Acordo Ortográfico de 1990, convidando autores, pró e contra, a analisar a polémica, que se mantém.» (Maria do Carmo Vieira)
Bem, para pensar livremente, é necessário que haja capacidade para pensar. No que diz respeito aos governantes, aos deputados da Nação, à classe docente, à classe jornalística, e a uns e a outros mais, que por aí andam a acordizar, essa capacidade não existe. Se existisse, o AO90 já teria sido extinto há muito.
Mas fiquem com mais um excelente texto da Professora Maria do Carmo Vieira, um oásis no deserto que é a classe docente, em Portugal.
(Isabel A. Ferreira)
Por Maria do Carmo Vieira
«Surpreende-me o facto de a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), que se tem notabilizado pela excelência do seu trabalho, e lembre-se a PORDATA, a edição e a realização de debates públicos sobre variadíssimos temas, que dão a “conhecer” e a “pensar o país”, contribuindo “para a identificação e resolução dos problemas nacionais”, nunca se ter interessado em debater publicamente ou dar a desenvolver, por escrito, um tema como o do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), convidando autores, pró e contra, a analisar a polémica, que se mantém, o que já de si traduz o interesse pelo tema, na sociedade portuguesa.
Um tema relevante para os portugueses, sublinho-o, porquanto a Língua que falamos guarda uma longa história e expressa uma identidade que Vergílio Ferreira tão expressivamente soube descrever, em Voz do Mar, aquando do Prémio Europália (1991, Bruxelas), evidenciando em simultâneo, e numa atitude humanista, a grandeza da diversidade da História e da Cultura dos povos que não implica “extensão de território”, como ele próprio precisa: “O orgulho não é um exclusivo dos grandes países, porque ele não tem que ver com a extensão de um território, mas com a extensão da alma que o preencheu. […] Uma língua é o lugar donde se vê o mundo e de ser nela pensamento e sensibilidade. Da minha língua vê-se o mar. Na minha língua ouve-se o seu rumor como na de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi em nós a da nossa inquietação.”
Os apoiantes do AO90, para o justificar, implicam a importância do Brasil no que ao número de falantes diz respeito, um argumento já de si falso, mas que cai por terra à luz do texto de Vergílio Ferreira de que os acordistas, aliás, se servem comummente, dele isolando a frase “Da minha língua vê-se o mar”. Situação idêntica, a da descontextualização, acontece com a frase de Fernando Pessoa/Bernardo Soares, Minha pátria é a língua portuguesa (“Livro do Desassossego”), o que favorece a manipulação do sentido. Ousam citar “os nossos maiores”, sabendo que estes não têm possibilidade de se defender destas e de outras aleivosias. Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, que ocupou também a 5 de Outubro (2000-2001), preparando-se nessa altura a famigerada Reforma de 2003, que em relação ao ensino do Português inventou TLEBS e etiquetas de roupa juntamente com textos literários, faz parte desse grupo.
Num discurso, relativamente recente, sobre os 130 anos do Jornal de Notícias (5 de Junho de 2018), Augusto Santos Silva expôs a sua arte de bem falar, citando nomes de escritores e frases suas, descontextualizadas, cujo significado se perde e se distorce. Ei-lo, iluminado pelo seu narcisismo: “Se Fernando Pessoa pôde dizer que a língua portuguesa era a sua pátria e se Vergílio Ferreira pôde dizer que da língua portuguesa se via o mar, acho que nós todos – os portugueses, os brasileiros, os angolanos, os guineenses, os são-tomenses, os moçambicanos, os cabo-verdianos e os timorenses – podemos dizer que da língua portuguesa, que é a nossa língua comum, se vê hoje o futuro”, acrescentando eu, por um canudo, senhor ministro!
Não posso deixar de o aconselhar, senhor ministro, a reler o texto de Vergílio Ferreira, para se inteirar melhor do seu sentido, e sobretudo o que integra a frase de Fernando Pessoa/Bernardo Soares porque seguramente nunca o leu, caso contrário não citaria a frase cujo sentido profundo colide com o objectivo que o senhor se propôs defender: o AO90. Surpreender-se-á com o facto de a referida frase ser uma apologia à língua portuguesa, enquanto “território abstracto”, marcado por uma herança greco-latina e por uma ortografia, “que também é gente”, que não pode andar à deriva de vontades e acordos que a aviltam. Santa ignorância, não é, senhor ministro? Mas ainda está a tempo de corrigir o erro.
Nesse mesmo discurso, Augusto Santos Silva reforça a sua indiferença pela História e pela Literatura Portuguesas, orgulhando-se de não pertencer “ao grupo daqueles que dizem que a língua portuguesa é a Língua de Camões”, preferindo “dizer que a língua portuguesa é a língua de Mia Couto, de Pepetela, de Germano de Almeida, de Clarice Lispector.” Na sua óptica, o Dia de Portugal terá sido erroneamente escolhido; Luís de Camões não lhe é figura grata e representativa. Tê-lo-á alguma vez lido, com atenção? Que o poeta se situe no séc. XVI, eivado desse “espírito novo” a que se refere Vergílio Ferreira, no seu texto integral, não tem também qualquer relevo para Augusto Santos Silva. Desconhecerá que a obra, épica e lírica, do poeta constitui “uma das expressões mais completas do homem português”? (Aníbal Pinto de Castro). No mesmo espírito de ignorância, a Reforma de 2003 aconselhava apenas a leitura de “2 ou 3 dos melhores sonetos” do poeta, limitando também, e drasticamente, o estudo de Os Lusíadas. Foi assim que um dos episódios emblemáticos da épica, “O Velho do Restelo”, desapareceu, situação que, lamentavelmente, se mantém.
Na intemporalidade que caracteriza a obra artística de um génio, neste caso, Luís de Camões, é possível que se reveja, senhor ministro, no grupo da gente “surda e endurecida”, “metida/no gosto da cobiça e na rudeza/ de uma austera, apagada e vil tristeza”, “gente” insensível ao “engenho” e ao “estudo”, à “experiência” da língua portuguesa e à “poesia” (Canto X de Os Lusíadas). Não duvido também que os escritores contemporâneos que citou, e de quem sou leitora, e admiradora de alguns, se sentiram envergonhados e insultados pela sua triste visão literária e atitude colonialista. Clarice Lispector já não está fisicamente entre nós, mas seguramente não gostaria de se ver assim referida.
É intolerável numa sociedade democrática, que forçosamente não pode suprimir ideias divergentes, que se tenha vindo a impedir, ao longo dos anos, uma discussão aberta e séria sobre o AO90, seja a nível político seja académico. É igualmente intolerável que se negue o caos linguístico que existe (escrita e pronúncia), decorrente da obrigatoriedade do cumprimento do AO 90, bem como as nefastas consequências, no Ensino, nomeadamente no ensino da Língua Portuguesa, consequências essas que o Ministério da Educação, em 1991, anteviu, no seu parecer contundente contra o AO 90: “Há acordos assináveis, sem grandes problemas e há outros que são de não assinar. O acordo recentemente assinado tem pontos que merecem séria contestação e é, frequentemente, uma simples consagração de desacordos.” Intolerável ainda que uma Câmara Municipal, a do Porto, contrariando a lei, impeça, pela segunda vez, cidadãos do Movimento da Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico (ILC-AO) de recolher assinaturas, no recinto onde tem lugar a Feira do Livro. De sublinhar que os voluntários não desistiram. Não estão dentro do recinto, mas, diariamente, à sua entrada e a adesão faz fila! Lembro-lhe, senhor presidente da Câmara do Porto, uma frase do realizador Youssef Chahine, no seu filme O Destino: “As ideias têm asas, nada pode impedi-las de voar.”
Acredito que, em nome do lema “Pensar livremente”, honrado pela FFMS, e dos objectivos que a Fundação se propõe, possamos vir a ser leitores ou público assistente de uma ou mais iniciativas sobre o tema, organizadas pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Na verdade, o debate sério é um factor crucial, num tema polémico. Recusá-lo é não deixar pensar livremente.»
Professora
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