Quinta-feira, 30 de Julho de 2020

«A língua portuguesa e uma iniciativa de cidadãos que continua à espera»

 

«Parece que se trata de uma mudança de bandeira, de hino ou até de território. Não é. É a justa anulação de uma medida tomada num período de insensatez.» (Nuno Pacheco)

 

Nuno Pacheco.jpg

 

Por Nuno Pacheco

 

A língua portuguesa tem os seus encantos, já se sabe, mas também tem dotes de magia. Ora vejam como é possível, com ligeira mudança de palavras, alterar substancialmente as idas do primeiro-ministro ao Parlamento: de “duas vezes, num mês” a “dois meses, uma vez”. Como soa idêntico e é tão diferente! Mas é confortável, sem dúvida. Em particular para o primeiro-ministro. Aliás, a revisão do regimento interno da Assembleia da República tem sido muito dada a esta palavra, “conforto”. Palavra tão necessária em tempos de pandemia, de crises, de lamentos. E até o Presidente da Assembleia da República beneficiaria deste “conforto” (esta foi a palavra empregue por apoiantes e detractores), para admitir ou rejeitar iniciativas. Não há dúvida: por este caminho, a Paz morará definitivamente em São Bento, em Setembro.

 

Mas enquanto todos vão de férias (ah, doce Agosto, mesmo ensombrado pela pandemia!), não será inútil recordar uma antiga história que ainda não chegou ao seu termo. Em São Bento, sim, em São Bento. Recuando quase duas décadas: no dia 6 de Fevereiro de 2004, Portugal ratificou finalmente a Convenção de Viena de 1969 sobre Tratados Internacionais, em vigor na ordem jurídica internacional desde 27 de Janeiro de 1980. O que diz esta Convenção? Que “a adopção do texto de um tratado efectua-se pelo consentimento de todos os Estados participantes na sua elaboração” (art.º 9.º) e que a sua entrada em vigor (art.º 24.º) se faz “nos termos e na data nele previstos ou acordados” ou, na falta destes, “logo que o consentimento em ficar vinculado pelo tratado seja manifestado por todos os Estados que tenham participado na negociação.” A Convenção, seguidos os trâmites da praxe, passou a vigorar em Portugal a partir do dia 7 de Março de 2004. Quase cinco meses depois, foi aprovado no parlamento o segundo protocolo modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, estabelecendo o seguinte: “[o AO90] entrará em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto da República Portuguesa”. O terceiro, em oito países. Isto apesar de a Convenção de Viena estabelecer que, para um tratado internacional (e o dito acordo é um tratado) entrar em vigor, é preciso que “o consentimento em ficar vinculado pelo tratado seja manifestado por todos os Estados que tenham participado na negociação”.

 

Esta irritante discrepância, a par dos efeitos nefastos que um acordo assim “amanhado” foi tendo no dia-a-dia da escrita e da fala em língua portuguesa, levou um grupo de cidadãos a recolher assinaturas para uma ILC (Iniciativa Legislativa de Cidadãos) que procurasse reverter tal decisão. Com base neste simples pressuposto: para um acordo que envolve oito países, não chegam três “assinaturas” oficiais, ou ratificações, são mesmo precisas oito. Objectivo explícito: revogar a resolução que aprovara o segundo protocolo modificativo.

 

A coisa levou o seu tempo, consumindo energias e entusiasmo (a recolha de assinaturas foi bastante participada e profícua) e no dia 10 de Abril de 2019, pelas 15h30, as caixas com as assinaturas lá foram entregues oficialmente em São Bento. Verificadas as assinaturas, por amostragem, e feitos todos os acertos, a ILC-AO foi finalmente aceite e transformada em Projeto de Lei 1195/XIII, com a assinatura de 21.206 subscritores, no dia 30 de Outubro de 2019 (mais de meio ano depois). Muito bem. Para abreviar, que já vai longo, houve a necessária audição dos representantes dos subscritores e depois vieram as dúvidas. Apesar de, no documento oficial de aceitação da ILC-AO, se dizer claramente que “o articulado do projeto [sic] de lei parece não colocar em causa a competência reservada do Governo para negociar e ajustar convenções internacionais”, duvida-se que cidadãos, através de uma lei, possam reverter uma resolução da AR. Esgrimem-se argumentos e gasta-se, naturalmente, tempo. O deputado-relator da Comissão de Cultura faz o seu relatório, duvida, pede um parecer à 1.ª comissão, que também duvida, faz outro relatório, que também duvida. Com os subscritores sempre argumentando, e a contestar as dúvidas. Passado mais de um ano e três meses sobre a entrega da ILC na AR, espera-se agora que o Presidente da Assembleia apresente o caso à Conferência de Líderes. A coisa assume tamanha gravidade que parece que se trata de uma mudança de bandeira, de hino, talvez mesmo de território. Não é. É uma simples e justa anulação de uma medida tomada num período de insensatez. Não anula o Acordo Ortográfico (o que é pena, no meu modesto entender), mas estabelece-lhe regras civilizadas de acordo com a Convenção de Viena, não com duvidosas conveniências.

 

Claro que se a Lei das ILC (17/2003, de 4 de Junho) tivesse sido cumprida, o relatório teria obrigatoriamente de ser escrito num prazo de 30 dias “após a admissão” da ILC (não foi, como se viu) e, diz o artigo 9.º, “esgotado esse prazo, com ou sem relatório, o Presidente da Assembleia da República deve agendar o debate e votação em plenário.” Simples, não é? Mas não foi. Mais um motivo para não calar a indignação nem baixar os braços.

 

Comentários a este texto:

 

 euserika.946083

Eu acho que o português europeu como língua mãe, está em perigo, já que estás regulações o que faz é mudar a língua para o dialeto mais forte e este es o português do Brasil, que praticamente é um idioma diferente ao português europeu, e este terminará de abrangir ao último.

 

Manuel de Campos Dias Figueiredo

A Assembleia da República, a casa dos maus exemplos democráticos.

 

Fonte:

https://www.publico.pt/2020/07/30/culturaipsilon/opiniao/lingua-portuguesa-iniciativa-cidadaos-continua-espera-1926271?fbclid=IwAR12mNg-bQcNMRZRsCFEL2UwzlZu4HN1l5shy45QoHCNVQZHu2j7bdHOuaI

 

publicado por Isabel A. Ferreira às 16:43

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Quinta-feira, 20 de Fevereiro de 2020

«A ortografia do português e a estranha história do prédio pintado de roxo»

 

«Vai ser discutida na AR uma iniciativa cidadã para repor a ordem ortográfica. Não bastam três países para validar um acordo: ou todos ou nenhum.»  

Nuno Pacheco in Jornal Público

 

Nuno Pacheco.jpg

 

Texto de Nuno Pacheco

 

«Há histórias verdadeiramente exemplares. Querem ouvir uma? Num prédio de oito andares e várias famílias, estabeleceu-se um método simples para as coisas do condomínio: cada andar designava um delegado e, reunidos os oito, propunham o que lhes parecia ser sensato. Era o comité. Mas depois, para que a coisa fosse mesmo democrática, as propostas do comité iam a votos em cada andar, as famílias assinavam um papel e só quando os oito papéis estavam na mão do fiel depositário escolhido (o vizinho do rés-do-chão) é que se avançava. E assim iam os lixos, as floreiras, a ventilação, a limpeza das escadas, a manutenção dos elevadores.

 

Um dia, o comité teve uma ideia brilhante: pintar o prédio de roxo. Todo, de alto a baixo. As cores originais oscilavam entre o creme, o rosa velho, umas molduras azuladas em torno das janelas e um enorme, mas já esbatido, desenho de arte pública numa das empenas. Quanto aos interiores, originalmente em branco, já disputavam cores ao arco-íris. A proposta do comité era radical: acabar com a anarquia cromática, não fosse a personalidade do prédio desintegrar-se. Assim, ficaria roxo por fora, sendo os interiores apenas brancos ou cinzentos. Uniformidade cromática no exterior, dupla coloração (uma facultatividade!) nos interiores. Esta mudança tinha ainda um pressuposto: a aprovação prévia de um Regulamento da Cor. Deste modo, evitavam-se anarquias futuras, salas verde-alface ou às florinhas, sabia-se lá.

 

O vizinho do rés-do-chão exultou e correu a colher assinaturas. O do último andar, idem. Mas tardava a papelada. E do Regulamento, nada. Um desespero para o comité, que já tinha encomendado as tintas. Sete anos passados, o comité tentou outra estratégia: dispensava-se para já o regulamento. Talvez assim assinassem. Resultado nulo. Então o comité lançou mão de um ardil: propôs, e fê-lo por escrito, que bastavam as assinaturas de três andares para pôr as trinchas em marcha. Assim foi: quatro andares assinaram, com muitas trapalhadas de nomes e datas à mistura, e o prédio pôs-se roxo. Ainda hoje, passados anos, andam a bater à porta dos resistentes, trinchas na mão, gritando: “Não resistam mais! Branco ou cinzento! É a lei!” Face ao silêncio, não desarmam: “Leiam, leiam! Está tudo na nota explicativa!”

 

A história deste prédio imaginário replica a do chamado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Assinado em 1991, esteve a marinar até 1998, ano em que um protocolo modificativo lhe dispensou a data inicial de entrada em vigor (1994) e a existência prévia de um “regulamento” (um vocabulário ortográfico comum), mantendo, no entanto, que tinham de assinar todos (artigo 3.º): “[o AO90] entrará em vigor após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da República Portuguesa.” Como não resultasse, inventaram em 2004 um segundo protocolo onde o artigo 3.º foi redigido assim: [o AO90] entrará em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto da República Portuguesa.” O roxo do prédio foi um acordo impingido a 8 por via de apenas 4, e com datas muito duvidosas, como já aqui pormenorizadamente se escreveu e documentou.

 

O que diz, a este respeito, a Convenção de Viena de 1969 (em vigor na ordem internacional desde 27/1/1980 e que Portugal ratificou em 6/2/2004)? Que “a adopção do texto de um tratado efectua-se pelo consentimento de todos os Estados participantes na sua elaboração” (art.º 9.º) e que a sua entrada em vigor (art.º 24.º) se faz “nos termos e na data nele previstos ou acordados” ou, na falta destes, “logo que o consentimento em ficar vinculado pelo tratado seja manifestado por todos os Estados que tenham participado na negociação.” Por todos. Convém dizer ainda que a Convenção de Viena vigora em Portugal desde 7 de Março de 2004, antes da assinatura do segundo protocolo modificativo do AO90 (27 Julho de 2004).

 

Por isto, que não é pouco, há-de ser discutida na Assembleia da República uma iniciativa legislativa de cidadãos (ILC-AO) com 21.206 subscritores e já admitida em 2019 como projecto de lei. O que pretende? A revogação da Resolução da AR n.º 35/2008, de 29 de Julho que aprovou o texto do segundo protocolo modificativo do Acordo Ortográfico. Ou seja: que o prédio não possa ser pintado de roxo só com o acordo de metade dos inquilinos.

 

Ora o que se passou foi o contrário, violando os pressupostos do próprio AO90 e as regras da Convenção de Viena de 1969 que Portugal ratificou. Independentemente de se gostar ou não do conteúdo do AO90 (que, repita-se, é um erro com coisas, não uma coisa com erros), um mínimo de decência obrigaria a cumprir a regra de “ou todos, ou nenhum”.

 

Com Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Timor-Leste de fora; e com Portugal, Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe dados como “ratificadores”, mas com práticas duvidosas (bastantes “buracos” no processo e uma “aplicação” ainda contestada, incentivadora de múltiplos erros e, em muitos lugares e instituições, ainda rejeitada ou simplesmente ignorada), impõe-se ao menos anular a “regra três”: ou todos ou nenhum! Para que o roxo seja, apenas, a cor da vergonha de quem decidiu corromper as regras da democracia para impor a sua vontade.»

 

Fonte:

https://www.publico.pt/2020/02/20/culturaipsilon/opiniao/ortografia-portugues-estranha-historia-predio-pintado-roxo-1904607?fbclid=IwAR2iPM4snkygnvMwzyihbOacgLaFSmKN18d3fv20SQQSrwej1Jonqs25V0k

 

publicado por Isabel A. Ferreira às 17:10

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