Por Manuel Matos Monteiro
Director da Escola da Língua
A beleza das palavras
Num tempo em que a lusa língua é tão maltratada, poderia vituperar contra o paupérrimo artigo de Jorge Miranda em que o constitucionalista defende um Acordo Cacográfico que não sabe aplicar (veja-se “heróica”) e cuja própria data desconhece (imagine-se o texto de um historiador a comemorar os cinquenta anos do 25 de Abril… de 1975…), mas que defende e propagandeia há anos sem conseguir observar a condição sine qua non para a sua defesa e apologia: inventariar as vantagens (uma só!) desse instrumento ante o anterior.
Quanto ao mais, o artigo está pejado de enfermidades linguísticas e de considerações desastradas sobre erros de português (veja-se o caso do «porque»/«por que»), sem um singelo exemplo ilustrativo. Poderia ainda bradar contra a ausência desse crime de leso-idioma (o Acordo Cacográfico) na discussão eleitoral, instrumento esse que os partidos políticos e os mais altos dignitários do Estado continuam sem saber aplicar, enquanto decretam, cegos e surdos (porque o Acordo tem consequências na língua escrita e falada), que seja aplicado.
Poderia até enumerar a quantidade de vezes que ouvi “acórdos” (isso mesmo) nos debates das legislativas. “A minha pátria é a língua portuguesa”, papagueiam com frequência e solenidade os habitantes do espaço público, mormente políticos, que (com louváveis excepções) estão sempre mortos por usar uma palavra estrangeira para exprimir determinado conceito que, na língua portuguesa, tem quatro, cinco ou seis palavras (por vezes, até mais) que dizem a mesmíssima coisa, enquanto apresentam um vocabulário reduzido e estereotipado, debitando a ladainha de dois em dois minutos: “empatia”, impacto”, “inclusivo”, “expectável”, “expectativas”, “janela de oportunidades”, “recorrente” e o verbo “colocar”. Será, por tudo isso, natural que os efeitos (“impactos”, para melhor compreensão) do Acordo Cacográfico não os afectem (“afetem”, escreverão eles, se souberem ou se a tecnologia os ajudar).
(Concedo ter cedido parcialmente à paralipse até aqui.)
Sucede que falar sempre mal faz mal, pelo que me dedicarei a boiar, garantidamente mais feliz, pelo que o título deste texto anuncia, preferindo de ora em diante algo deleitoso a algo deletério.
Estamos em Fevereiro de 2016, na sala de aula da terceira classe de uma pequena e tranquila cidade (Copparo) no Norte de Itália, e a professora Margherita Aurora pede aos seus alunos que escrevam dois adjectivos para cada vocábulo que dita.
Uma dessas palavras é “flor”.
Matteo, um menino de oito anos, escreve: “perfumada e petalosa”.
A professora assinala o segundo adjectivo, a palavra petalosa, como um “erro
bonito”.
A professora diz a Matteo e aos colegas que redijam uma carta à Accademia della Crusca, a mais alta instância linguística italiana.
Passadas três semanas…
… chega uma carta à escola de Matteo.
Diz a carta:
Querido Matteo, a palavra que inventaste é uma palavra bem formada e poderia ser usada em italiano, assim como são usadas palavras formadas da mesma maneira.
Tu juntaste petalo + oso ➞ petaloso = cheio de pétalas, com muitas pétalas
Da mesma forma, existem em italiano:
pelo + oso ➞ peloso = cheio de pêlos, com muitos pêlos
coraggio + oso ➞ coraggioso = cheio de coragem, com muita coragem.
A tua palavra é bonita e clara […].
[…]
Obrigada por nos teres escrito.
Cumprimentos para ti, para os teus companheiros e para a tua professora.
Maria Cristina Torchia
Redacção da Consultoria Linguística
Accademia della Crusca
A história — … e, com ela, a palavra… — difundiu-se pela televisão, pela rádio, pelos jornais, pelas redes sociais. O próprio primeiro-ministro italiano Matteo Renzi felicitou Matteo num tuíte. O já saudoso Fernando Alves, que só sabia fabricar superbíssimas crónicas, dedicou-lhe uma superbíssima crónica.
Tropeçamos na beleza e desatamos a correr?
James Joyce, na sua obra mais difícil, Finnegans Wake, criou palavras que fundiam dois verbos. Por exemplo, pegou em “catapultar” e “arremessar”, e escreveu: “catapultarremessam”. Pegou em “arrasar” e “massacrar”, e escreveu: “avançam para arrasamassacrar”.
Pegando numa onomatopeia e num substantivo, o escritor irlandês deu-nos a sonora e expressiva ideia de uma… “pftjqueda”.
Lembrei-me disto, porque escrevi ao Instituto de Lexicologia e Lexicografia da
Língua Portuguesa (ILLLP) propondo os vocábulos “lucivelo” e “ancenúbio”,
vocábulos esses que foram felizmente acolhidos no Dicionário da Língua
Portuguesa (DLP). “Lucivelo” e “ancenúbio” são as palavras portuguesas que
exprimem respectivamente os francesismos abat-jour e nuance.
“Lucivelo” vem de luz e véu, e significa o mesmo que o galicismo “abajur”. O DLP acolhia a palavra francesa abat-jour, mas não acolhia a palavra portuguesa
“lucivelo”.
Recorde-se que, para o galicismo abat-jour, temos:
“quebra-luz”
“pára-luz”
“tapa-luz”
“veda-luz”
“abaixa-luz”
e… claro… lu-ci-ve-lo.
É digno de nota que estas seis palavras portuguesas sejam muitíssimo menos usadas do que a palavra do francês.
“Ancenúbio”, que também já mora no DLP, significa o mesmo que o francesismo nuance, sendo formada pelos mesmos elementos latinos presentes na criação do termo estrangeiro. An-ce-nú-bi-o, que palavra tão suave e melodiosa, tão replena de eufonia.
Continuo ainda a aguardar que “intimilhação” (1), “trabalhólico”, “calipedia”, “aletia”, “fenotexto”, “tecnofilia”, “tecnófilo” e “tecnodeslumbrado” tenham o mesmo destino: que tais propostas que enviei por escrito ao ILLLP desaguem igualmente no DLP.
“Intimilhação” nasce de “intimidação” e “humilhação”. “Intimilhação”, quanto ao mais, traduz muito bem o bullying. Espero ainda que o aportuguesamento de workaholic desague no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (o já referido DLP). Alguém estranha a palavra “alcoólico”? Porquê estranhar então “trabalhólico”? Mera falta de hábito que domestica e amestra o paladar.
Manuel Matos Monteiro, Director da Escola da Língua
(1) A primeira vez que tropecei neste prodígio foi num texto do tradutor A. Gonçalves.
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