O texto de José Pinto Lima foi publicado na secção «Cartas ao Director” do Jornal Público, acerca de um artigo [clicar no link] onde um “linguista” português afirma que o “português do Brasil” tem os dias contados. Ora isto já tem barbas brancas, e portanto, está ultrapassadíssimo.
Este tema já foi tratado neste Blogue por várias vezes, desde sempre, e, no Brasil, ainda no tempo em que por lá estudei, a linguagem que se falava e escrevia era já brasileira, porque demasiado distanciada do padrão português, no léxico (enriquecido pelos falares indígenas e africanos e de outros povos que lá se fixaram), na fonologia, na ortografia, na morfologia, na sintaxe, na semântica, e em ene vocábulos que o Brasil castelhanizou, americanizou, afrancesou e italianizou e abrasileirou.
Não é preciso ser-se linguista, basta estar-se atento à evolução da linguagem no Brasil, para poder comprovar que o Português dos excelentes clássicos da Literatura Brasileira já nada tem a ver com a linguagem do século XXI d. C..
Tal artigo também me deixou bastante irritada à conta dos disparates que lá se disseram, o que me obrigou a escrever um texto [clicar no link] a contestá-lo.
A designação “português do Brasil” não passa de uma ferramenta política, que nada tem a ver com linguística.
José Pinto Lima diz que «o linguista Fernando Venâncio sugere que o português do Brasil se passe a chamar “brasileiro”». A sugestão NÃO é do Venâncio. Isto é algo que já vem de longe, e alguns linguistas e estudiosos brasileiros, há muito, mas muito tempo, já puseram e explicaram porquê, essa hipótese, que só ainda não foi concretizada, porque o objectivo político para que tal aconteça ainda não foi alcançado.
Aqui deixo as cartas de José Pinto Lima e de Carlos Coimbra, com esta observação: tudo indica que está a ser cometido um crime de lesa-pátria em Portugal, tendo o Estado Português descartado a Língua Oficial do País, para a substituir pela Variante Brasileira do Português, na sua forma grafada e, à força de tanto nos atirarem com novelas brasileiras e luso-brasileiras e comentadores e cantores brasileiros, todos os dias, nas televisões, já se começa aqui e ali a falar mal o Brasileiro, que é uma linguagem que apenas os Brasileiros sabem falar bem. E isto é algo a que os portugueses na diáspora estão muito mais atentos do que os portugueses que vivem em Portugal, e são neutros, e são indiferentes e olham e não fazem nada...
Isabel A. Ferreira
Sobre o português do Brasil
Li nos meios de comunicação que o linguista Fernando Venâncio sugere que o português do Brasil se passe a chamar “brasileiro”. Sendo também eu linguista, conheço bem o Fernando Venâncio, bom colega e amigo. Contudo, não posso aceitar a designação de “brasileiro” para o português falado no Brasil. Seria preferível dizer “português do Brasil” ou “português brasileiro”. Quanto ao português de Portugal, a expressão “português europeu” parece-me acertada.
Assentemos em “português brasileiro” e “português europeu”. Não vejo a necessidade de introduzir a designação “brasileiro”. Compreendo que o português falado no Brasil se tenha afastado muito desde o século XVII até hoje. Mas não estamos perante duas línguas! Vejamos: em Portugal, temos uma colónia de brasileiros a viver e a trabalhar aqui porque precisamente compreendem o português europeu e são compreendidos pelos portugueses. Como os linguistas sabem, a inteligibilidade mútua é um critério fundamental para diferençar dialectos e línguas. Aceitemos que estamos perante uma língua, o português, que tem (pelo menos) duas variantes: o português europeu e o português brasileiro.
Temos assim dois portugueses. Como também há o inglês do Reino Unido e o inglês dos EUA. Ao inglês dos EUA também se pode chamar “inglês americano”. Reitero a ideia de dois portugueses: o português europeu e o português brasileiro.
José Pinto de Lima, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras [Nota à margem
in https://www.publico.pt/2024/09/15/opiniao/opiniao/cartas-director-2104043
[Nota à margem: NÃO existe “inglês do Reino Unido”, nem «inglês dos EUA”, mas sim a Língua Inglesa e as suas Variantes; NÃO existe um “português europeu” e um “português brasileiro”, mas sim a Língua Portuguesa e a sua Variante Brasileira, isto se quisermos ir de encontro às Ciências da Linguagem] – Isabel A. Ferreira
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Reflexão de Carlos Coimbra, sobre o que disse José Pinto de Lima, recebida via e-mail:
«No dia 15 de Setembro, foi publicada uma carta de José Pinto de Lima (JPL), basicamente equiparando a língua falada no Brasil ao Português padrão que para lá foi levado.
Nessa carta li comparações descabidas, do tipo de apreciações que terão levado ao uso dum Acordo (ainda não formalizado) que abdica do papel da Língua Portuguesa original.
Vivo no Canadá, sou praticamente trilingue, e também falo alemão e russo. A minha mulher era brasileira e conheço bem o Brasil, desde Manaus até ao sul.
É preciso notar que a diferença entre Brasil e Portugal não é só uma questão de pronúncia. Em Angola ou Moçambique, a pronúncia é diferente, mas a Língua é o Português, sem qualquer dúvida.
Já no Brasil usam semântica diferente, alteram a devida ordem das palavras, desrespeitam a etimologia na escrita e pronunciam "sílabas" inexistentes entre duas consoantes (hequitares, atimosfera e muitas mais).
Eu falo o Português normal de Lisboa, mas garanto que é difícil fazer-me entender no Brasil, especialmente ao telefone. Isto enquanto JPL escreve "a inteligibilidade mútua é um critério fundamental"...
Aliás, no Brasil tive ocasião de examinar uma prova escrita de Português para alunos na ordem duns 15 anos, a qual parecia um exame para estrangeiros, e tão básica era que nunca seria usada em Portugal.
JPL tenta equiparar Brasil e Portugal fazendo uma comparação entre o inglês americano e britânico. Vivendo no Canadá há muitos anos, estou perfeitamente familiar com o que se fala na Inglaterra, Escócia, Irlanda e neste lado do Atlântico.
A única diferença é a pronúncia e a escrita em umas poucas palavras, e nunca o Reino Unido faria um Acordo com os EUA que o levasse a escrever "à americana"!
Falam a mesma Língua, sem fazer as trapalhices que a língua sofre no Brasil.
A expressão "português europeu", usada por JPL, considero-o um insulto à minha língua nativa, tantas vezes descrita como "Língua de Camões". Eu falo PORTUGUÊS.
O que se fala no Brasil é uma variante, um português "malfalado", bem sonoro, com pronúncia dominante e atraente, compreensível (não completa e mutuamente), mas "Português", não é, não.
Em outros tempos, teria outra designação...
Carlos Coimbra,
Toronto, Canadá
(416)-239-4759
«A “unificação” ortográfica dos países de língua portuguesa é, definitivamente, objectivo inalcançável, e qualquer tentativa de a forçar acaba em caricatura, tapando num lado e destapando noutro. O AO90 foi, nisto, exemplo acabado, ao criar centenas de novas discrepâncias que nada resolveram e só nos ficarão envergonhando. Venha agora, e depressa, uma comissão que nos liberte deste emaranhado que ninguém pediu e restitua à língua portuguesa um rosto apresentável.»
Fernando Venâncio, linguista, escritor e crítico literário
«2 - Garantir a solenidade, valorização e inviolabilidade da Língua Oficial Portuguesa através da recusa e suspensão imediata do denominado “Acordo Ortográfico” de 1990, sem possibilidade de qualquer revisão.»
100 Medidas de Governo do Chega, página 3
«O Acordo Ortográfico, que estraga a língua portuguesa, é de esquerda ou direita?»
José Pacheco Pereira, professor, cronista e político
Como é óbvio, a questão ortográfica é sobremaneira importante quando definimos o nosso sentido de voto. No nosso escrito de Fevereiro, dissecámos o conteúdo linguístico do Programa Eleitoral do PSD 2022 e, na sequência dessa análise, assestamos, agora, baterias nas medidas de governo do partido Chega.
A primeira impressão que temos é a de que houve uma clara opção pela grafia anterior ao AO90, o que era expectável, tendo em conta o teor da medida citada em epígrafe. Vejamos, então, com diversos exemplos, a qualidade da ortografia do partido de André Ventura, que foi um dos subscritores de um manifesto contra o Acordo Ortográfico, divulgado pelo jornal Público em 23 de Janeiro de 2017:
- na página 3, deparamo-nos com projecto e respectivos, coexistindo com diretamente;
- na página 4, de mãos dadas no mesmo parágrafo, estão lecionar e leccionar, convivendo com actual;
- na página seguinte, encontramos três formas lídimas, a saber: actividade, respectivo e respectivas;
- também a página 6, está livre de emissões do AO90, com os termos factura e electricidade;
- na página 7, destaca-se a ausência de hífen na forma mais valias:
- na página 9, encontramos atual e actos (que se repete duas vezes na página seguinte), na companhia de excetuando e excepção;
- na página 10, lê-se ainda accionar, acupuntura e setor;
- já na página 11, temos só formas genuínas: accionar, actos, actuais, actualização e sector (que recuperou a consoante perdida na página anterior);
- a página 13 só apresenta formas sem contaminação do AO90: efectividade, efectiva e protecção;
- o mesmo acontece na página 14, com os termos adoptado e efectiva;
- na página seguinte as consoantes estão no seu lugar em directos e sector;
- actualmente e infractores, na página 16, respeitam a etimologia;
- na página 17, encontramos acto e actividade;
- a página 20 foi atacada pelo vírus consoanticida em eletricidade (duas vezes), faturação e diretos, o que também ocorre em direto (pág. 21);
- na página 23, tecto, actual, protecção, directa mostram que o problema das páginas anteriores foi debelado;
- na página 25, deparamo-nos com uma recaída em efetiva;
- na página 26, coexistem antissemitismo e mão-de-obra, na companhia de sectores e atividade;
- a página 30, à imagem de grande parte dos órgãos de comunicação social, é uma verdadeira salgalhada, com objetivo, autossuficiência, ações e leccionação;
- na página seguinte só há bons exemplos, como actividade e concepção;
- para finalizar, as palavras autossuficiência e autossuficiente surgem, acompanhadas de respectivos na página 32.
Podemos, pois, concluir que, o AO90 só veio criar confusões entre os escreventes, já que potenciou imensos erros (como os que estão assinalados nas imagens que acompanham este escrito), amplamente divulgados por páginas de oposição ao Acordo Ortográfico no Facebook, as quais têm realizado um muito louvável trabalho, desmascarando a maravilhosa língua unificada, isto é, a cacografia.
Conclui-se ainda que esta alteração ortográfica, da qual os únicos beneficiários foram as editoras de livros didácticos e de dicionários, bem como os respectivos autores, foi levada a cabo por motivos puramente políticos, sem quaisquer fundamentos linguísticos e revelando uma extraordinária ignorância no que diz respeito à natureza da língua. Um dia, a história que conduziu a língua a uma profusão de fatos (como uma monumental alfaiataria), de contatos e a “centenas de novas discrepâncias” será contada sem eufemismos.
João Esperança Barroca
Foi usando estas expressões eruditas, referidas no título, que o mui ilustre escritor português, intelectual, crítico literário e académico, actualmente com a nacionalidade holandesa, Fernando Venâncio, comentou no Facebook, numa página intitulada «Acordo Ortográfico Não!» a Carta enviada à UNESCO Pela Salvaguarda da Língua Portuguesa como Património Cultural Imaterial, subscrita por 61 cidadãos de nacionalidade portuguesa (que integraram o núcleo inicial, mas que, em poucos dias, já aumentou para 85).
Não que eu tenha alguma coisa contra o eruditismo de tão notável intelectual, muito pelo contrário, penso que tal até lhe confere bastante prestígio, além de que o insigne académico tem todo o direito e liberdade de expressar o que lhe vai na alma.
Mas não à custa do meu nome e de falácias.
Pois o notável escritor português, que agora tem nacionalidade holandesa, escreveu o seguinte, nessa tal página do Facebook, sobre a Carta à UNESCO, que, ao que parece, leu pela rama:
«Como é possível que gente sensata como NUNO PACHECO, ANTÓNIO CHAGAS (António Chagas Dias?) e ANTÓNIO-PEDRO VASCONCELOS tenham aposto o seu nobre nome a esta abominável mixórdia (refere-se à Carta) cozinhada pela pseudo-linguista ISABEL A. FERREIRA, conhecida detractora do Português do Brasil?
«Existe actualmente uma situação absurda em Portugal, onde, de forma oculta, está a tentar-se substituir a Língua Portuguesa, conforme determinado no artigo 11.º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP), pelo Dialecto Brasileiro», lê-se no texto.
Mais se lê: «O governo português violou a Constituição da República Portuguesa (CRP), impondo de forma brutal, autoritária, ilegal e inconstitucional, o dialecto brasileiro».
Meus Senhores e Amigos: para cozinhados indigestos, já nos chegava o próprio "Acordo Ortográfico de 1990".
Link para a Carta à UNESCO:
https://olugardalinguaportuguesa.blogs.sapo.pt/movimento-em-prol-da-lingua-portuguesa-147014
também publicada no Jornal PÚBLICO, aqui:
Link para a publicação de Fernando Venâncio:
https://www.facebook.com/groups/acordo.ortografico.nao/permalink/2275121362512331/
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Como mulher PENSANTE e LIVRE, sou frequentemente alvo do ataque de machistas que acham que a mulher foi feita para estar em casa a coser as meias do marido, ficar de boca calada, e não fazer sombra ao homem. Daí que me veja obrigada a vir a público, de vez em quando, defender-me desses ataques, não só para marcar posição, como também para pôr no seu devido lugar os que acham que as mulheres existem para serem dominadas socialmente pelos homens.
Ora acontece que, já há bastante tempo, sou o ódio de estimação do distinto crítico literário Fernando Venâncio, o qual certa vez me mandou calar, e claro, eu não me calei, fiz-lhe frente e fiz-lhe sombra, facto que ele nunca me perdoou, e isto acontece até aos mais ilustres intelectuais!
Excelentíssimo Senhor Doutor Fernando Venâncio,
Continuarei, como sempre, a fazer orelhas moucas aos que odeiam as mulheres que PENSAM, e desafio-o a mostrar-me onde encontra, no meu currículo, que é público, que sou "linguista", para dizer que sou pseudo; e exemplifique essa de ser "detractora" do que chama erradamente Português do Brasil; e justifique a designação de abominável mixórdia, para que os leitores percebam o que quis dizer com isso, e eu possa defender-me deste elevadíssimo ataque de um holandês.
Que me odeie, porque tem aversão a mulheres que PENSAM, que têm opinião, que não aceitam tudo o que suas eminências dizem, tudo bem. Estou habituada a esse tipo de ódio machista.
Mas não me calará com a sua verborreia! Entendido?
E tudo por causa do "dialecto", como se chamar dialecto ao que se fala e escreve no Brasil seja um insulto! Logo no Brasil, que é um poço de dialectos! Enfim, gostaria que as pessoas reflectissem, mas ao que vejo, reflectir é algo inacessível a muitos.
E os que mais criticam são os que menos fazem em prol da Língua Portuguesa.
Isabel A. Ferreira
Este Acordo surgiu da ingénua convicção de que a grafia do português europeu era ordenável a nosso bel-prazer. Não é. Mas podem, e devem, atalhar-se desordens maiores. Hoje. Já. Cada dia perdido, o desastre aumenta.
Fernando Venâncio
01/08/2016 - 07:30
1 - Alguma vez um anti-acordista disse sobre o Acordo Ortográfico de 1990 qualquer coisa boa, mesmo boa? Pois aqui vai uma magnífica. O AO90, ao qual se deseja uma rápida e humana morte, terá deixado um precedente deveras valioso. Pela primeira vez no nosso secular debate ortográfico, a Pronúncia é feita critério decisivo da grafia, assim destronando a Etimologia do topo do pódio, invertendo beneficamente a hierarquia. Mas foi mais sorte que esperteza, já que nunca os autores e promotores do Acordo reivindicaram o cometimento. Só que, no momento de ser aplicada a Portugal essa sã primazia da Pronúncia, as coisas correram mal. Já lá iremos.
2 - Houve um momento, por 1990, em que fomos colectivamente patetas. Ou, em versão atenuada, deixámos a patetice à solta. Tínhamos tido, é certo, o discernimento de rejeitar sem perdão o Acordo Ortográfico de 1986. Era um produto desconchavado, a pingar óleo por todos os lados, um absurdo de alto requinte. Mandava, pois, a mais singela chispa de inteligência que lembrássemos bem alto, a quem de direito, que nem um só dos artífices da façanha pensasse em propor mais o que quer que fosse. Quem concebera o monstro de 86 jamais seria de confiar. Sabe-se o que aconteceu. Aos mesmos exactos e impreparados senhores foi estendida de novo a passadeira vermelha, só se lhes pedindo, por deferência, que apresentassem qualquer coisinha menos repugnante. Pagámo-lo como se viu.
3 - A coisa ortográfica é, hoje, gerida por duas instituições de que não se conhecem mútuos entendimentos: o ILTEC (Instituto de Linguística Teórica e Computacional), encarregado pelo Estado de definir as formas a adoptar, e a ACL (Academia das Ciências de Lisboa), que se declara instância competente para "elaboração e publicação" do Vocabulário Ortográfico do idioma. As suas propostas divergem, às vezes do modo mais arbitrário. Dois exemplos, por recente consulta online.
Ambos os institutos admitem as grafias (e pronúncias) perfeccionismo, perfeccionista, perfectível, mas só o ILTEC patrocina perfecionismo, perfecionista, perfetível. Os dois dão a cara por conceptista, conceptual e conceptualizar, os dois negam a variante concepcional, mas conceptualmente e conceptível admitem-se só no ILTEC e conceptivo só na ACL.
4 - Não resolvendo nenhum real problema, o Acordo veio agravá-los. Mais alguns exemplos, sempre em estrito cenário europeu.
O vocabulário do ILTEC e o da ACL avançam conectar como forma única (excluindo portanto conetar). Mas, surpreendentemente, permitem conectividade e conetividade, conectivo e conetivo, conector e conetor. Não existirá, então, conetar? Os bem informados dicionários online da Priberam e da Porto Editora acham que sim, e neles figuram conectar e conetar.
Para nos orientarmos neste sombrio mundo, tomamos o Dicionário da ACL, organizado por João Malaca Casteleiro (um "dicionário de autor", no fino dizer de Ivo Castro), que fornece pronúncias e se pretende "normalizador", publicado em 2001, com o AO90 já no terreno. Aí achamos, sempre com som k, só conectar, conectivo, conector.
Agora em movimento contrário, pesquisamos os casos de séptico e asséptico. O dicionário de Malaca Casteleiro grafa-os assim, mas só em séptico o p aparece audível. A ACL de hoje apadrinha asséptico e assético, mas só inculca séptico. O oficial ILTEC, esse, avaliza todas as grafias (e portanto pronúncias): séptico e asséptico, sético e assético.
Situações destas multiplicam-se por dezenas. E recordemos que o panorama brasileiro (que o leitor português frequenta, mesmo quando só lhe cai sob os olhos) está longe de coincidir com qualquer destes. Que teria feito, pois, gente sensata? Não teria feito nada. Manter-se-ia longe deste vespeiro, e nunca certamente se meteria a esgaravatar nele.
Tudo isso se fez invocando uma "pronúncia culta", outra novidade conceptual do AO90, não decerto disparatada, mas de aplicação factualmente leviana. A simples realidade é esta: o sistema português das consoantes etimológicas encontra-se, desde há séculos, em profunda instabilidade, digamos tudo, em estado caótico, e não se lhe vislumbra melhoria. Podemos lamentá-lo, podemos tentar abrir aqui e ali corta-fogos, mas a instabilidade veio para ficar. E que fez este AO? Tirou-nos duma situação em si suportável, e introduziu-nos, sem ganho nenhum, num emaranhado de perplexidades.
5 - A indecisão da nossa pronúncia não pára no articular de consoantes. As vogais, também elas, e sobretudo o a, podem comportar-se caoticamente. Veja-se o caso da primeira vogal do prefixo para - no vocabulário do ILTEC. É aberta em para-brisas, para-choques, para-raios, para-sol, mas fechada (e repare-se na grafia) em paraquedas. O fechamento em paramédico ou paranormal, podendo explicar-se, continua da ordem do especioso.
Também as vogais que precedem consoantes etimológicas vêm sendo historicamente afectadas. De modo lento, decerto pontual, mas irreversível, mostram um processo de fechamento (de elevação, dizem os linguistas), também ele de tipo caótico. Pronunciamos àtor, mas âtuar e crescentemente âtriz. Dizemos olfáto mas olfâtivo, exáto mas exâtidão. O próprio dicionário de Malaca Casteleiro ensina as pronúncias àção e àcionamento, mas âcionado, âcionar, âcionista.
Mas há mais extraordinário ainda. Mesmo quando articulamos a consoante, a vogal precedente pode, contra toda a expectativa, fechar-se. Assim, a nossa pronúncia "culta" pede (são meros exemplos) lácteo mas lâcticínio, càpturar e càptura mas câptar, bàctéria (ou já bâctéria?) mas bâcteriano, fácto mas fâctual. É, de novo, o caos em todo o esplendor. Pois bem, num raro pronunciamento público, os fabricadores do AO mostram-se aqui triunfantes. "Estão a ver? As consoantes não fazem serviço nenhum". É uma elaborada forma de cinismo. Em vez de reconhecerem que em sistemas caóticos, ou não se interfere, ou se o faz com tino, apenas esfregam sal na ferida, numa satisfação alarve.
6 - Como se tudo isto não bastasse, a aplicação do AO entrou numa dinâmica perversa. Mal informados, desorientados, os utentes refugiam-se no excesso de zelo, cortando consoantes a torto e a direito, em patéticas violações do Acordo em nome do próprio Acordo. De dezenas de casos documentáveis, citem-se atidão, cócix, helicótero, núcias, oção, óvio, rétil, sução, tenológico. Nem faltam as soluções invencivelmente criativas como "os fatos consumados", "em idade proveta", "travagem abruta", "pato com o diabo" (em reedição de Saramago), "catação de investimento", "o entusiasmo elipsou-se", "a mulher latente".
E que fazem os procriadores do Acordo? Encolhem os ombros, sorriem distantes, não é com eles. Há-de passar. Hipercorrecções sempre as houve e haverá. Tirando isso o Acordo é um sucesso. Não lhes ouvimos um público e curial "Não foi isto o que quisemos!", como se até isso os humilhasse.
7 - Ao fim de anos e anos de queixas, denúncias, ataques, implorações, os inventores do AO continuam, pois, a festejá-lo. Nunca, porém, a protegê-lo. A sério: jamais se viu defenderem materialmente o seu produto. Não existe um simples artigo em que o AO90 veja defendidas as suas concretas opções, esclarecidas naturais dúvidas, expostas vantagens. Em horas de aperto, vêm promessas de não se negar uma revisãozinha, não senhor, mas só com todas as ratificações no bolso. É a mais transparente das chantagens. Se o empenho numa revisão deveras existisse, o racional seria oferecê-la desde já em troca das ratificações em falta. Mas a questão não se lhes põe sequer. Os guardiães do AO sabem que a mais ténue fresta conduziria à implosão do edifício. Chamem-lhes parvos.
8 - Hoje, e de há muito, a eficaz resistência ao Acordo é devedora a autores, a tradutores, a jornalistas e, sim, também a editores. É devedora a ensaístas como António Emiliano (O fim da ortografia, 2008) e Francisco Miguel Valada (Demanda, deriva, desastre, 2009), mais o saudoso Vasco Graça Moura, que puseram em crua luz os abismos de absurdo a que, em matéria de economia linguística, este AO conduzirá. É devedora a professores, gente na primeira linha de fogo, e a muitos, muitos cidadãos. É devedora a activistas na rede como o tradutor João Roque Dias e o colectivo "Tradutores contra o Acordo Ortográfico", que vêm cartografando desmandos, incongruências, arbitrariedades. É devedora ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, que, mesmo acordizante, se fez repositório de quanto sobre o AO se publica.
Este Acordo surgiu da ingénua convicção de que a grafia do português europeu era ordenável a nosso bel-prazer. Não é. Mas podem, e devem, atalhar-se desordens maiores. Hoje. Já. Cada dia perdido, o desastre aumenta.
Professor e linguista
Fonte: https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/ao90-a-formula-do-desastre-1739935
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