«Como me dizia um bom amigo, cada canal da nossa TV é uma 𝑚𝑖𝑛𝑒𝑟𝑎𝑙𝑖𝑧𝑎𝑑𝑢𝑟𝑎 𝑖𝑛𝑒𝑥𝑎𝑢𝑟𝑖́𝑣𝑒𝑙 𝑑𝑒 𝑛𝑒𝑜𝑣𝑜𝑐𝑎𝑏𝑢𝑙𝑖𝑠𝑚𝑜𝑠 𝑎 𝑠𝑖𝑛𝑎𝑙𝑖𝑧𝑎𝑟, 𝑐𝑜𝑚𝑜 𝑑𝑒𝑠𝑐𝑜𝑏𝑟𝑖𝑚𝑒𝑛𝑡𝑎𝑑𝑢𝑟𝑎𝑠, 𝑎 𝑑𝑖𝑐𝑖𝑜𝑛𝑎𝑙𝑖𝑧𝑎𝑟!» (António Bagão Félix)
Por Bagão Félix
EM PORTUGUÊS
N. 40
𝑀𝑖𝑛ℎ𝑎 𝑝𝑎́𝑡𝑟𝑖𝑎 𝑒́ 𝑎 𝑙í𝑛𝑔𝑢𝑎 𝑝𝑜𝑟𝑡𝑢𝑔𝑢𝑒𝑠𝑎
Fernando Pessoa
NEO(I)LOGISMOS
A televisão tem-se vindo a revelar uma incubadora privilegiada para a gestação de forçados ou pretensos neologismos da nossa língua. Por hoje, limito-me a exemplificar com algumas “novidades”.
Numa curta entrevista televisiva, e a propósito de uma notícia local, um presidente de câmara fez uma solene comunicação em que informava e comentava que, com subentendido mérito próprio, os seus munícipes iriam poder “ᴀᴄᴇssᴀʀ” (sic) a determinado benefício. É claro que, para dar essa informação, o erudito autarca poderia ter-se socorrido do verbo “aceder”, como qualquer praticante raso da nossa língua. Mas não o fez. A mania da superioridade na fala e na escrita tê-lo-á levado a um exercício de assinalável contorcionismo linguístico. Dir-se-á que, no português do Brasil, “acessar” é usado (por exemplo, acessar a Internet, acessar a conta), mas, em Portugal, além de soar mal, evidencia uma “inovação” que uma pessoa comum não entende (ou, quem sabe, se não ouvindo ou percebendo o “𝑎” inicial, fica com medo que algum benefício vá … cessar). E assim se lançou para as submissas ondas electromagnéticas da Televisão um verbo de legitimidade duvidosa, que não faz falta nenhuma na comunicação social, nem justifica registo nos nossos dicionários. Servirá somente para pretensa exibição, como a moda e o estilo em voga impõem.
Noutro dia, foi a vez de um apresentador de um programa, lançar para a luz do dia um novo verbo. Dizia ele, que “era necessário valorizar e … ɪᴍᴘᴏʀᴛᴀɴᴛɪᴢᴀʀ” (sic) um determinado assunto. Pronto: depois de priorizar, alavancar, elencar e outros que tais, surge a obsessão neologística de “importantizar” o que é ou não é importante. Isto se, entretanto, tal neófito verbo não for “ᴇᴜᴄᴀʟɪᴘᴛᴀᴅᴏ” (outro verbo inventado que já anda por aí, ainda por cima, com alguma injustiça para a árvore a que está ligado).
A propósito da vacinação, também tenho ouvido a expressão “os menores de 60 anos”. Confesso que fico confundido, porque sempre pensei que os menores não chegassem àquela idade. Tudo muda, e agora temos menores de 60 anos e maiores de 18 anos. Não se trata, evidentemente, de um erro, mas mandaria a clareza que se escrevesse e dissesse “pessoas com menos de 60 anos” em vez de “menores de 60 anos”. Com o aumento da esperança de vida, ainda se vai chegar aos “menores de 100 anos”, transformando Portugal num infantário, com a capital no “Portugal dos pequeninos”!...
Também por estes dias, ouvi, numa entrevista, uma pessoa querendo dizer, com orgulho e entusiasmo, que, no seu ofício, trabalhava com base no “estado da arte”. Esta expressão significa o nível mais avançado de conhecimento ou de desenvolvimento em determinada área e em determinado momento. Acontece que o entrevistado, por desconhecimento ou lapso, disse “estado da nação”. Como não houve rectificação, nem do próprio, nem da entrevistadora, fiquei a pensar por que razão não há estado de alerta linguístico nas exigências do actual estado de calamidade. E, de seguida, até percebi que confundir estado da arte com estado da nação é coisa que se vê todos os dias, num infindável estado de graça (ou “interessante”?).
Como me dizia um bom amigo, cada canal da nossa TV é uma 𝑚𝑖𝑛𝑒𝑟𝑎𝑙𝑖𝑧𝑎𝑑𝑢𝑟𝑎 𝑖𝑛𝑒𝑥𝑎𝑢𝑟𝑖́𝑣𝑒𝑙 𝑑𝑒 𝑛𝑒𝑜𝑣𝑜𝑐𝑎𝑏𝑢𝑙𝑖𝑠𝑚𝑜𝑠 𝑎 𝑠𝑖𝑛𝑎𝑙𝑖𝑧𝑎𝑟, 𝑐𝑜𝑚𝑜 𝑑𝑒𝑠𝑐𝑜𝑏𝑟𝑖𝑚𝑒𝑛𝑡𝑎𝑑𝑢𝑟𝑎𝑠, 𝑎 𝑑𝑖𝑐𝑖𝑜𝑛𝑎𝑙𝑖𝑧𝑎𝑟!
P.S. Nem sempre o domínio das Finanças leva ao domínio do bom português. Foi o que aconteceu ao nosso Ministro das Finanças que, em solene conferência de imprensa depois de uma reunião europeia no Centro Cultural de Belém, “solfejou” tempos de verbos no presente do conjuntivo, na sua forma preocupantemente invasiva nos nossos canais televisivos: "estêjemos" (em vez de estejamos) e "póssamos” (em vez de possamos). Sempre ladeado por um comissário europeu e outro ministro estrangeiro, foi felicitado, suponho que depois de um bom trabalho dos intérpretes. Como agora há quem diga mais eruditamente, 𝑣𝑒𝑟𝑏𝑎𝑙𝑖𝑧𝑎𝑟, em vez de tão simplesmente pronunciar dizer, falar, pensar ou referir, aqui o governante também verbalizou …, mas mal.»
Fonte: https://www.facebook.com/antonio.bagaofelix/posts/10219079830175669
Se o Orçamento de Estado já é MAU, e se a esse MAU acrescentarmos o facto de estar escrito em MIXORDÊS, o que diz da gigantesca tragédia linguística que assola o nosso desventurado país, que faz-de-conta-que-tem-uma-língua, então o OE2020 é péssimo.
Uma vez mais as palavras VERGONHA e VERGONHOSO podem ser aplicadas com toda a propriedade, porque em mais nenhum país do mundo, tal insulto a uma Língua Materna, acontece.
A quem querem os governantes portugueses fazer de parvos?
Deixo-vos com o texto de Francisco Miguel Valada, que começa por citar o escritor, filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo italiano Umberto Eco, que diz o seguinte:
«Ora, questa frenesia dell’apparire (e la notorietà a ogni costo, anche a prezzo di quello che un tempo era il marchio della vergogna) nasce dalla perdita della vergogna o si perde il senso della vergogna perché il valore dominante è l’apparire, anche a costo di vergognarsi?»
«Ora, esse frenesi de aparecer (e notoriedade a todo custo, mesmo ao custo do que antes era a marca da vergonha) nasce da perda da vergonha ou perde-se o sentido da vergonha, porque o valor dominante é a aparência, mesmo à custa de se envergonhar?» (Umberto Eco)
Isabel A. Ferreira
Foto: Tiago Petinga/Lusa [http://bit.ly/36HQkRp]
Um texto de Francisco Miguel Valada
«Contra o Orçamento do Estado para 2020»
«É impossível alguém rever-se no OE2020, a não ser que ande a espalhar o caos ortográfico. Efectivamente, a mixórdia de 1990 tem um dos seus pontos altos anuais no momento em que o ministro das Finanças entrega ao presidente da Assembleia da República um texto que o primeiro obviamente não escreveu e o segundo certamente não lerá. Baseio esta minha hipótese num facto: estes são exactamente os mesmos protagonistas dos momentos simbólicos do OE2016, do OE2017, do OE2018 e do OE2019.
Se Mário Centeno e Eduardo Ferro Rodrigues tivessem escrito ou lido as propostas de 2016, 2017, 2018 e 2019, provavelmente não teríamos o caos de 2020 que aqui vos deixo, sob a forma de pequena amostra:
caráter geral (p. 231) e carácter geral (p. 123);
setor público (p. 194) e sector público (p. 188);
atualizações dos escalões (p. 249) e actualizações salariais (p. 62);
despesa efetiva (p. 73) e despesa efectiva (p. 70);
Programas Orçamentais e Políticas Públicas Setoriais (p. 61) e Programas Orçamentais e Políticas Públicas Sectoriais (p. 61): sim, na mesma página;
setores e funções (p. 84) e entre sectores (p. 136);
acordos coletivos (p. 17) e serv. colectivos (p. 91);
exigência da fatura (p. 197) e remanufactura (p. 198)- sim, rimavam: mas isso era antigamente;
eletricidade (p. 194) e electricidade (p. 207);
largo espetro (p. 157) e espectro internacional (p. 211);
gestão de ativos (p. 292) e gestão de activos (p. 294);
proteção social (p. 170) e protecção social (p. 114);
ação social (p. 100) e acção social (p. 91);
Direção (p. 224) e Direcção (p. 220). (*)
Como este exercício de entrega e recepção é meramente simbólico, pois as personagens deste ritual (já interpretadas por duplas como Vítor Gaspar e Assunção Esteves, Maria Luís Albuquerque e Assunção Esteves ou Centeno e Ferro Rodrigues) não dão o devido valor ao texto (o valor intrínseco de qualquer texto só pode ser extraído se ele for de facto lido), não vale a pena insistir no exercício de leitura e de escrita.
Portanto, convém que o poder político dê o único passo lógico para termos uma ortografia clara, sem ambiguidades, uma ortografia com carácter, com sector, com sectores, com facturas, com protecção, com acção e com direcção.
Como o Acordo Ortográfico de 1990 falhou (cf. 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020), regressemos à ortografia de 1945, sff.
Obrigado e até para o ano.»
Fonte:
https://aventar.eu/2019/12/17/oe2020/#comments
(*) Questão: quem é capaz de afirmar conviCtamente que as palavras grafadas a vermelho pertencem à Língua Portuguesa? E se não pertencem, como todos sabemos que não, o que estão a fazer num documento oficial do governo português? (Isabel A. Ferreira)
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