«Este acordo ortográfico, que ninguém pediu, é desde o início uma comédia e um erro. Foi uma tentativa meio lunática de unir a língua por parte de alguns espíritos, tanto académicos como políticos. O inglês, por exemplo, não precisa de nenhum acordo, o caso de Portugal devia ser exactamente o mesmo. A língua em Portugal, no Brasil e nos países africanos pode ter variações e grafias diferentes. Achar que a escrita é uma transcrição fonética é de absolutos loucos. O melhor a fazer seria pedir desculpa aos Portugueses e voltar à grafia vigente antes desta loucura.»
João Pereira Coutinho, Cronista e escritor
«[…] eles olham, mas não vêem; escutam, mas não ouvem nem entendem.»
Mateus, 13:13-16
«A reforma ortográfica não enriquece em nada o idioma, mas alguém enriquecerá com ela.»
João Ubaldo Ribeiro, Escritor brasileiro
Nos nossos últimos textos, temos vindo a dar conta da caterva de ocorrências da palavra corrução. Hoje, trazemos até vós mais algumas dessas recolhas, mostrando que a estupidez é verdadeiramente transversal.
Ilustrativa, ainda, do caos ortográfico é a recente reportagem do Expresso, https://expresso.pt/sociedade/ensino/2023-02-11-Nao-paramos-milhares-de-professores-protestaram-em-Lisboa-poucos-tem-esperanca-no-Governo-com-fotogaleria-3f8cda8bde 11-02-22, sobre a manifestação de professores, onde se pode ler: «“O Governo vem dizer que não há dinheiro quando já se investiu milhões na TAP, nos bancos e a situação dos professores permanece igual. Há dinheiro para tudo que fica “cá para trás” quando comparado com a “restante carreira técnica” e o “serviço cada vez mais burocrático”. “Em vez de estarmos a leccionar, estamos perdidos entre burocracia”. O somar destas situações levam a um “descontentamento generalizado” entre o setor.» e: «A diretora de turma garante que a sua classe vive “mergulhada em burocracia” e lembra “pequenos benefícios” que podiam fazer a diferença na satisfação do setor da educação. “Não consegui arranjar vaga para os meus filhos na escola onde leciono e fui obrigada a colocá-los no privado”. Tal como os colegas de profissão, Cláudia Carvalho queixa-se das “horas letivas” que nunca são “realmente reduzidas” porque é necessário “prestar apoio aos alunos”.» Como o leitor facilmente detecta, as duas formas do verbo leccionar, ora surge com cê, ora sem cê. Será que um dos professores entrevistados segue a ortografia anterior ao AO90, utilizando o cê, privilegiando a etimologia, como se prova na imagem do dicionário, e o outro docente utiliza a nova ortografia?
João Esperança Barroca
«Este péssimo acordo ortográfico resiste num coma perpétuo. E tarda em morrer, o estafermo.»
Texto de NUNO PACHECO
«Depois do excelente texto de António Bagão Félix, publicado terça-feira neste jornal e intitulado O Acordo Mortográfico na AR, apetecia não voltar tão depressa ao assunto. Mas como o tema é vasto e há sempre muitíssima coisa que fica por dizer, aqui se deixam mais algumas notas, ao correr da pena.
Precisamente há dez anos, no Correntes d’Escritas da Póvoa de Varzim (cuja mais recente edição agora decorre), perguntaram a Maria Lúcia Lepecki, professora universitária, ensaísta e crítica literária brasileira, o que pensava do acordo ortográfico (AO). Respondeu assim: “Eu sempre achei que o acordo ortográfico não é preciso: um brasileiro lê perfeitamente a ortografia portuguesa e um português lê perfeitamente a ortografia brasileira. Olha a ortografia, sabe que palavra é que é, pronuncia correctamente (…). Acho que é um desperdício de energias, um desperdício de dinheiro, e penso que se devia gastar o pensamento e as forças em outra coisa qualquer.” Nesse mesmo ano, 2008, o Prémio Camões calhou a um escritor brasileiro, baiano, João Ubaldo Ribeiro. Também ele se pronunciou várias vezes sobre o tema, mas ficará na memória o que ele disse numa entrevista ao JL, em 1989. Fê-lo em linguagem desabrida: “Sou contra, acho uma burrice. (…) Então se eu fosse director de um jornal português e estivesse acostumado a que se escreva director, não é porque um brasileiro de merda me diz agora escreva ‘diretor’… Nem, como o brasileiro, só para agradar a um português, ir botar um pronome que destronque a base da língua de um brasileiro. Não, isso não. Acho que portugueses e brasileiros têm que se acostumar a que hoje são povos irmanados pela mesma história, povos irmanados até pela mesma família como é o meu caso, mas duas partes diferentes.” E dizia mais: com isso, “nós corremos o risco de nos tornar povos até mais inimigos.” Alguém o ouviu?
Recuando uns três anos, até 1986, um outro brasileiro, Afrânio Coutinho (baiano como Ubaldo e professor, ensaísta e crítico literário como Lúcia Lepecki) disse ao Jornal do Comércio do Rio de Janeiro: “A nossa língua é a brasileira. Os dois idiomas, o de Portugal e o do Brasil, saíram de um tronco comum e se desenvolveram divergentemente, a partir do Renascimento. Por isso nunca haverá unidade linguística, sonho de alguns sentimentalistas.” Porém, ao contrário de Lepecki e Ubaldo, Afrânio Coutinho era visto como “acérrimo defensor do acordo ortográfico, criticando o generalizado repúdio dos portugueses por tal instrumento de unificação da grafia da língua comum.” Quem diria?
1986 é, a este propósito, um ano interessante, pois foi nele que se selou um esboço de acordo de má memória que gerou (e bem) uma tempestade nacional, já que, entre outras aberrações, propunha a abolição de todos os acentos gráficos e muitos hífens, tornando irreconhecíveis múltiplas palavras. Entre as muitas críticas que suscitou, e que ficaram para a história, conta-se a que viria depois a ser publicada em livro em 1987, pelas Edições João Sá da Costa, sob o título A Demanda da Ortografia Portuguesa. Ora nesse livro, “organizado por Ivo Castro, Inês Duarte e Isabel Leiria”, há um curto texto intitulado “Sete Teses sobre a Ortografia Portuguesa”. Dizia: “Conhecido que é o efeito de retorno do escrito sobre o oral, é inaceitável defender alterações ortográficas que potenciem mudanças linguísticas em sentidos previsíveis ou imprevisíveis.” Foi o que se fez, em 1986 ou em 1990? Não, foi o contrário.
Mais: “A facultatividade é, por definição, contrária à própria ideia de normalização gráfica – de ortografia. Defender uma versão fraca de unificação [como defendiam os autores do texto] significa admitir grafias duplas no espaço lusófono, mas uma e apenas uma grafia em cada espaço nacional em que o português seja língua materna ou língua oficial.” Era o que havia, antes do AO de 1990. Por fim: “Um sistema ortográfico não é mais simples por conter um menor número de sinais portadores de informação: é tanto mais simples quanto menos ambíguo for permitindo um reconhecimento mais rápido e menos dependente do contexto.” É isto que temos, hoje? Não, é precisamente o contrário!
Mas se tristemente Lepecki, Ubaldo e até Afrânio deixaram de fazer parte do mundo dos vivos, este péssimo acordo ortográfico resiste num coma perpétuo. E tarda em morrer, o estafermo.»
Fonte:
https://www.publico.pt/2018/02/22/culturaipsilon/opiniao/ortografices-ao-correr-da-pena-1803892
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