«... Ah grita:
importa pouco se te escuta alguém,
no redemoinho tenso da surdez danada.
Porque há-de haver quem ouça, ainda há-de haver
quem ouça. ...»
(Jorge de Sena, "O grito do silêncio")
No ano em que celebramos o cinquentenário do 25 de Abril, que libertou o país da ditadura e nos trouxe a democracia, os partidos políticos, assim como os media, que lhes dão visibilidade, não podem, mais uma vez, por prepotência, cobardia ou ignorância, silenciar a questão da imposição política a Portugal do Acordo Ortográfico de 1990.
Cidadã portuguesa - professora de Português, em Paris e em Lagos, agora reformada - consciente da minha responsabilidade, dos meus deveres e dos meus direitos, num país democrático, permito-me chamar a vossa atenção para a imperiosa necessidade de zelarmos pela defesa da nossa língua, actualmente gravemente fragilizada e em risco, pela imposição política antidemocrática do Acordo Ortográfico de 1990, a Portugal.
O desinteresse do nosso país pela nossa língua, suporte essencial da nossa identidade e da nossa cultura, é algo que vem de longe e é totalmente incompreensível. Recordemos alguns aspectos do mesmo: a Academia das Ciências de Lisboa, fundada a 24 de Dezembro de 1779, levou 222 anos para publicar o seu primeiro e único dicionário (2001), agora com uma versão na 'net'; compare-se com a Real Academia Española, de 1713, que publicou, em Outubro de 2014, a 23.ª edição do seu dicionário! E, além da falta de investimento no estudo da língua, inclusivamente no nosso sistema de ensino, convém também lembrar o esquecimento e o desrespeito a que são votados os nossos emigrantes - imagem fora de portas da nossa língua e cultura - o que Carlos Reis justifica, por isso ter pouco a ver com a 'internacionalização' da língua portuguesa!...
A política de língua nacional tem-se sobretudo empenhado em fazer Acordos ortográficos com o Brasil, que desde 1907 decidiu - e está no seu direito - escrever a sua língua de forma própria.
Estamos em 2024, um ano particularmente assinalável no desenrolar da História nacional. Evoquemos três datas essenciais e recordemos o modo como o poder político as tem tratado:
1 - 500 anos do nascimento de Camões
«Este país te mata lentamente»
("Camões e a Tença", Sophia de M. B. A.)
Num artigo do "Público" de 20 de Dezembro de 2023, intitulado «Programa das comemorações dos 500 anos de Camões em 2024 está por fazer», podemos ler:
«Resolução em Conselho de Ministros que há dois anos e meio determinou realização das comemorações estabelecia criação de estruturas que ainda não existem, diz comissária nomeada para fazer o programa.
(...) Nada existe além do anúncio da intenção do Governo de comemorar este feito, disse à agência Lusa a catedrática Rita Marnoto, comissária designada para preparar o programa das comemorações, em coordenação com as estruturas previstas. (...)»
A propósito deste 'esquecimento' nacional, recordo Jorge de Sena:
«Se me centrei em Camões, numa das minhas direcções, é porque o admiro tremendamente, tenho pena de que tão grande poeta tenha nascido português e para pasto de raça tão ordinarizada, e porque, sendo o maior e o eixo da nossa literatura, é em relação a ele que tudo tem de ser feito.» (Carta a Eduardo Lourenço, 13 de Janeiro de1968, in "Eduardo Lourenço - Correspondência - Jorge de Sena", ed. Gradiva)
«Ignorar ou renegar Camões não é só renegar o Portugal a que pertencemos, tal como ele foi, gostemos ou não da história dele. É renegarmos a nossa mesma humanidade na mais alta e pura expressão que ela alguma vez assumiu. É esquecermos que Portugal, como Camões, é a vida pelo mundo em pedaços repartida.» ("Discurso da Guarda", Paris, 3 de Junho de 1977, in "Jorge de Sena, Rever Portugal - Textos Políticos e Afins, ed. Guimarães)
Ouçamos ainda Vasco Graça Moura: «As questões da identidade começam por estar relacionadas com a língua materna e esta deve a Camões a sua dimensão moderna. (...) A língua de Camões está irreconhecível. Se ele voltasse ao mundo, decerto pensaria em rasgar a sua obra. Deixámos de ser dignos dela.» (in "A língua de Camões?"- "Público", 09 de Junho de 2010)
2 - 50 anos do 25 de Abril
«Ou poderemos Abril ter perdido
O dia inicial inteiro e limpo
Que habitou nosso tempo mais concreto?»
(Sophia de M. B. A.)
A imposição política do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) a Portugal é um verdadeiro atentado contra a democracia que nos trouxe o 25 de Abril de 1974. Todo o processo político que conduziu à sua implementação no nosso país é antidemocrático.
Começo por dar a palavra a Vítor Aguiar e Silva:
"A língua, na sua existência profunda e multissecular, vive antes de nós e sobrevive depois de nós, não podendo ser objecto, no seu corpo e no seu espírito, de alterações ocasionais e circunstancialmente políticas, que desfiguram a sua «lei secreta», ou seja, o «seu génio», como aconteceu com o aberrativo «acordo ortográfico» que constitui um inominável crime imposto politicamente à língua portuguesa.» (in "Diário do Minho", 06/01/2019)
Convém recordar que a língua de Portugal - país independente desde 1143, Tratado de Zamora - que aqui nasceu, cresceu e se formou, é falada e escrita há séculos, em todo o território nacional. "A individualidade da língua portuguesa começou a desenhar-se no domínio do léxico e pode remeter-se para uma data próxima do século VI. (...) Os dois primeiros textos escritos em português - a «Notícia de Torto» e o «Testamento» de D. Afonso II - datam de 1214-1216." (Maria Helena Mira Mateus). Em 1296, no reinado de D. Dinis (1279-1325), esta língua foi adoptada pela chancelaria régia.
Quanto ao Brasil, onde chegámos em 1500, país gigantesco e de diversa população, no século XVIII, em 1758, a língua portuguesa tornou-se língua oficial, por imposição do Marquês de Pombal, em detrimento da 'língua geral', anteriormente forjada para os contactos com a população local. Actualmente, no Brasil, além da língua portuguesa, oficial, haverá mais de 210 idiomas, uns indígenas e outros falados por várias comunidades de imigrantes.
Pessoalmente sou contra o AO90 desde que o conheci, aquando da sua publicação no Diário da República. Desde 2008, tenho lutado contra este crime de lesa-pátria, por todos os meios ao meu alcance - textos publicados, contributos enviados para os grupos de trabalho sobre o AO90 da Assembleia da República, contactos diversos por correspondência, recolha de centenas de assinaturas para a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o AO90, entregue na Assembleia da República (https://ilcao.com/ ), com 22.047 assinaturas, e que a Assembleia da República ostensivamente ignorou, etc.... Aliás, logo no início, em 2008, escrevi à Associação de Professores de Português (APP), e à FENPROF (sindicato dos Professores), insistindo na necessidade de promoverem o debate sobre o AO90, no sistema de Ensino... Não fizeram nada! Aceitaram a imposição do mesmo no ensino, esquecendo o esforço que, nas últimas décadas, tinha sido feito para combater o analfabetismo nacional...
Quando ainda estava a trabalhar, fui a Portimão ouvir Malaca Casteleiro, grande responsável pelo AO90, que defendia o dito, insistindo na vantagem da simplificação da aprendizagem da ortografia pelas criancinhas! Perguntei-lhe publicamente se as crianças portuguesas tinham algum atraso mental, visto que as crianças francesas, inglesas, italianas, alemãs, espanholas, etc., conseguiam aprender ortografias muito mais complexas do que a nossa!
Há muito que me preocupa esta espécie de - já antigo - desprezo pela língua de Portugal, assumido pela política, e também pela 'elite', nacional. O esforço feito, há décadas, para combater o nosso vergonhoso e tradicional analfabetismo está agora a ser substituído pela promoção do novo analfabetismo! Proliferam os disparates, inclusivamente nas legendas dos canais televisivos. E o corrector ortográfico ajuda fortemente...
Um dos argumentos dos defensores do AO90 é que seria difícil agora pô-lo em causa, uma vez que desde 2011 começou a ser ensinado aos mais jovens! Pasme-se: e não se preocuparam quando forçaram a sua imposição ao país e à população que, desde 1946, ortografava a nossa língua segundo o Acordo entre Portugal e Brasil (1945), que o nosso país respeitou e o Brasil rejeitou!
Quanto ao argumento de que 'as línguas evoluem', brandido pelos defensores do AO90, neste contexto linguisticamente indefensável, convém reflectir sobre os seguintes aspectos:
1.º as línguas evoluem naturalmente e não em função da imposição política de um qualquer decreto;
2.º a evolução verificada numa língua poderá exigir uma 'reforma' ortográfica, tendo em conta as características dessa língua, e não um 'acordo' ortográfico entre variantes da língua que evoluíram visível e audivelmente de maneira diferente, como é bem notório no caso da norma portuguesa e brasileira da língua portuguesa;
3.º as diferenças entre estas duas normas, no que toca a todos os aspectos da língua - vocabulário, morfologia, sintaxe, fonética - não podem ser escamoteadas com uma pretensa 'uniformização' ortográfica, via AO90 que, aliás, propõe inúmeras duplas grafias, facultatividades, numa negação aberrante do próprio conceito de ortografia;
4.º no AO90 ("Anexo II - Nota explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa") refere-se que o Brasil não respeitou o Acordo de 1945, porque seria obrigado a repor as "chamadas consoantes mudas"- que entretanto tinha já eliminado, por conta própria - e a aceitar a acentuação gráfica de Portugal, com acento agudo em vez de circunflexo, em palavras como António/Antônio; em consequência, aí se conclui também que "não é possível unificar por via administrativa divergências que assentam em claras diferenças de pronúncia, um dos critérios, aliás, em que se baseia o sistema ortográfico da língua portuguesa";
5.º Assim, justificando a recusa do Acordo de 1945 pelo Brasil, com as "diferenças de pronúncia", o AO90 impõe a Portugal a supressão das "consoantes não articuladas" (Base IV), já adoptada pelo Brasil, num total desrespeito pela referência etimológica (o que apaga a história da nossa língua e nos afasta das outras línguas europeias), e pela pronúncia portuguesa, em que a manutenção dessas consoantes preserva a abertura das vogais pretónicas, em Portugal ensurdecidas, e mantém a unidade da grafia entre palavras da mesma família; ex.: óptimo/ optimismo; directo/direcção; adoptar/adopção; recepção/recepcionista; espectáculo/espectacular; lectivo/leccionar; colecção/ colectivo/ coleccionar, etc. Aliás, podem constatar-se já as alterações na pronúncia portuguesa que esta supressão das consoantes mudas está a provocar...
6.º No essencial, o AO90, que segundo o próprio texto "constitui um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa e para o seu prestígio internacional", impõe a Portugal as opções brasileiras: supressão das consoantes ditas mudas, assim como do hífen, nas formas monossilábicas do verbo 'haver' seguidas da preposição 'de' (ex.: há-de); supressão 'facultativa' do acento agudo nos verbos em -ar, no pretérito perfeito simples (ex.: cantámos) e do acento circunflexo no verbo 'dar', no presente do conjuntivo (dêmos), suprime-se ainda o acento circunflexo, nas formas verbais como leem, veem, deem, etc....
Convém não esquecer que a norma portuguesa, e a sua ortografia consolidada, (norma euro-afro-asiática) constituía a referência linguística da língua portuguesa considerada por Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Goa, Timor, Macau, fruto da expansão planetária que a nossa História outorgou à nossa língua.
Quanto ao referido "prestígio", talvez a língua do Brasil esteja a usufruir dele, mas não a nossa língua, de dia para dia mais desfigurada, menosprezada, ridicularizada, e repetidamente mal pronunciada e mal escrita.
3 - 10 de Março - Eleições legislativas
«É em função de um conhecimento do essencial, daquilo que não podemos abandonar sem mutilação próxima e futura, que as escolhas decisivas para o nosso destino devem ser feitas.»
(in "O Labirinto da Saudade", Eduardo Lourenço)
Todos nós, cidadãos portugueses, em idade de votar, sendo Portugal um país democrático, somos chamados a participar nestas eleições legislativas. Entre os múltiplos aspectos da vida nacional a considerar, a imposição política ilegítima do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) ao nosso país tem obrigatoriamente de ser posta em causa e discutida publicamente, contrariamente ao que tem sucedido nas inúmeras eleições anteriores, desde 1990!
Ainda não vi abordar esta questão, nem pelos políticos, nem pelos jornalistas, nos vários debates que a televisão nos tem proposto, numa atitude que só confirma a fragilidade da nossa democracia, assim como a cegueira e a ignorância nacionais, fruto do tradicional analfabetismo!
Talvez valha a pena reler - ou ler - os textos essenciais (ver abaixo) para o desenrolar de todo este processo, a começar pelo próprio Acordo: 1. Resolução da Assembleia da República n.º 26/91 - "Aprova, para ratificação, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa"; e também pela "Rectificação" (2.) de que foi objecto (pequeno parêntese: a Assembleia da República não se tinha apercebido de que o texto do AO90 já estava escrito com o dito, e não na correcta ortografia da nossa língua!...).
Recordemos também atitudes e decisões de responsáveis políticos que conduziram a língua de Portugal à indigna situação em que agora se encontra.
Começo por esta extraordinária declaração de Cavaco Silva, então Presidente da República Portuguesa, na Feira do Livro em Díli, a 22.05.2012: «Quando fui ao Brasil em 2008, face à pressão que então se fazia sentir no Brasil, o Governo português disse-me que podia e devia anunciar a ratificação do Acordo, o que fiz.» (in "Público")
O Governo à época era socialista, sendo José Sócrates o Primeiro-Ministro. Dessa época data a - "3. Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008 (que aprova o Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico)", "Protocolo" que determinou que a ratificação do Acordo por três países (da CPLP) bastava para a sua entrada em vigor!
É também do mesmo Governo a "4. Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011", que decidiu a aplicação do AO90 no sistema de ensino e na administração pública.
Entretanto o Governo socialista caiu e o Governo seguinte, com Passos Coelho, Paulo Portas e Nuno Crato, decidiu aplicar submissamente, e sem discussão, as decisões do governo anterior. Seguiram-se dois governos socialistas, sendo António Costa Primeiro-Ministro, e tendo no primeiro a participação do BE e do PCP: o tabu manteve-se e o AO90 continua, sem discussão, a generalizar-se e a caricaturar a nossa língua!
A terminar, dou a palavra a António Emiliano:
«Falar da ortografia portuguesa, um bem que levou 700 anos a estabilizar-se, como se fosse coisa pouca (a estabilização da nossa fronteira política continental levou cerca de 100 anos), e falar de uma mudança ortográfica como uma simples alteração cosmética do sistema linguístico padronizado de uma nação multissecular dotada de um património literário e textual imenso, é simplesmente não se saber do que se está a falar.» (in "O primado da escrita")
«O calibre dos erros e deficiências encontrados no texto do Acordo Ortográfico e da Nota Explicativa, bem como a falta de sustentabilidade razoada de várias das suas disposições - constituindo um todo que, em vez de ser apresentado de forma inatacável, como se esperaria, é passível da crítica negativa que desenvolvi, e virá afinal a ter consequências 'disortográficas' - levam-me a concluir que esta reforma causará "lesões" irreparáveis na língua portuguesa no plano da escrita, da oralidade, do ensino e do progresso científico.
Por atentar contra a estabilidade do ensino, a valorização da língua e a integridade do seu uso, valores que a Constituição consagra e protege, entendo que esta reforma não serve o interesse de Portugal e deve, em consequência, ser impugnada e rejeitada.
Lisboa, 30 de Maio de 2008»
(in "Uma reforma ortográfica inexplicável: comentário razoado dos fundamentos técnicos do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990) - (Parecer) - EXCERTOS - António Emiliano, Universidade Nova de Lisboa)
N.B.: Para aceder aos textos fundamentais:
https://ciencias.ulisboa.pt/sites/default/files/fcul/institucional/legislacao/rar_26_91.pdf
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/resolucao-assembleia-republica/26-1991-403301
https://ciencias.ulisboa.pt/sites/default/files/fcul/institucional/legislacao/dr_19_91.pdf
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/rectificacao/19-1991-331594
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/resolucao-assembleia-republica/35-2008-454814
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/resolucao-conselho-ministros/8-2011-280944
https://files.diariodarepublica.pt/1s/2010/09/18200/0411604117.pdf
Maria José Abranches Gonçalves dos Santos
***
Este texto de José Gil foi escrito em 17 de Fevereiro de 2012, para a Visão, altura em que esta revista ainda usava a grafia correCta, ou seja, a grafia de 1945, que está em vigor e nunca deixou de estar. Mas há quem prefira violar a lei, mais do que cumpri-la.
Ainda hoje ouvi a Ministra da Defesa, no Telejornal da SIC, dizer, a propósito da recusa de um grupo de militares em seguir no navio Mondego, numa missão, por entenderem que o barco não estava em condições de navegar (o que parece não ter sido o caso) que as ordens não são negociáveis, só há espaço para NÃO obedecer a ordens ilegais.
Sabendo-se como se sabe que a aplicação do AO90 é comprovadamente ilegal e inconstitucional, ninguém em Portugal tem a obrigação de obedecer a uma ordem para aplicar o ilegal AO90, ainda mais não existindo LEI alguma que a tal obrigue.
Mas há quem goste de obedecer servilmente, acriticamente, vá-se lá saber com que motivações.
Por que trouxe à liça este texto? Para o enviar aos que governam, para que saibam que a RESISTÊNCIA existe e que nós gritamos com José Gil e com Jorge de Sena, porque «há-de haver quem ouça, ainda há-de haver quem ouça. (...)»
«(...) Todavia,
é teu dever gritar além dos gritos.
Ao menos grita o teu protesto agudo.
O grito do silêncio que te amarra.
A liberdade, a paz, a ordem necessária
a que um país resista ao próprio mal
que leva no seu sangue secular.
Grita por isto a voz do teu silêncio.
(...) Ah grita:
importa pouco se te escuta alguém,
no redemoinho tenso da surdez danada.
Porque há-de haver quem ouça, ainda há-de haver
quem ouça. (...)»
("O Grito do Silêncio", Jorge de Sena, "40 Anos de Servidão")
Isabel A. Ferreira
«Além de ser afectiva, a ortografia marca um espaço virtual de pensamento. Com o AO teremos limites e contornos mais visíveis que serão muros de uma prisão»
'Parece que, a pouco e pouco, o Acordo Ortográfico vai perdendo terreno. Todos os argumentos que o criticam foram já repetidamente enunciados: desde a importância de a etimologia ser irreconhecível nas palavras desfiguradas, ao factor, intolerável, de se impedir assim o livre desenvolvimento e transformação do português. Este é, sem dúvida, um dos aspectos mais graves desse Acordo imposto artificialmente a todo um mundo de falantes da língua portuguesa.
Uma língua é um organismo vivo e, segundo o seu contexto social, geográfico, histórico, demográfico, económico, geopolítico, transforma-se imprevisivelmente. É a multiplicidade livre dos movimentos que fazem evoluir naturalmente uma língua que permite o surgimento de casos extremos, geniais, que subvertem a língua ao ponto de inventarem novas sintaxes dentro da sintaxe habitual: esses casos, revolucionários, como o de Guimarães Rosa ou de Pessoa, só são possíveis quando o espaço virtual de liberdade interna da língua se solta e ousa, para além do uso rotineiro e correcto da gramática.
Então nascem novas gramáticas (como a do Livro do Desassossego ou a do Grande Sertão: Veredas), novas palavras e expressões, os horizontes da língua abrem-se indefinidamente (até onde Pessoa poderia ter ido para além de onde foi? Ninguém duvida de que poderia ter ido mais longe ainda, mas ninguém sabe para onde e até onde teria ido). Então descobre-se a maravilha de ser possível uma outra expressão linguística, um insuspeitável sentido das coisas, um outro pensamento. E uma outra expressão é uma dimensão até ali escondida, por dizer e para ser dita, da liberdade. Porque impede (ou entrava) tudo isto, o AO é repressivo e destruidor.
Mas não são só as possibilidades dos casos extremos que são afectadas. Porque todos nós vivemos nesse meio natural das distâncias soltas e invisíveis que a língua cria a cada instante: no calão (língua do corpo), no humor, no jogo certeiro de um argumento, na invenção, por uma criança, de um palavrão. Vivemos mergulhados na liberdade da língua, para a qual permanentemente contribuímos. É que nós dizemos mesmo o que não sabemos que dizemos. Através do inconsciente da língua, o sentido físico, arcaico, dos fonemas, as sensações ligadas às letras, a doçura e a aspereza do ar inspirado e expirado no som inarticulado ou palreado pelo bebé são retomados sem o saber pelo adulto na palavra articulada. A ortografia é afectiva, polissémica, racional e fugidia, conectiva e disjuntiva (aliterações, ressonâncias, ritmos, cromatismos, etc.), indutora de associações com novas palavras e construindo non-sens. Induz um espaço indefinido de criação. Como eu amava «auto-retrato» e me sinto esmagado pelo «autorretrato»! Porque contraria este movimento natural da escrita, o AO é néscio e grosseiro.
Um último efeito, talvez o mais grave: o Acordo mutila o pensamento. A simplificação das palavras, a redução à pura fonética, o «acto» que se torna «ato», tornam simplesmente a língua num veículo transparente de comunicação. Todo o mistério essencial da escrita que lhe vem da opacidade da ortografia, do seu esoterismo, desaparece agora. O fim das consoantes mudas, as mudanças dos hífenes, a eliminação dos acentos, etc., transformam o português numa língua prática, utilitária, manipulável como um utensílio. Como se expusesse todo o seu sentido à superfície da escrita. O AO afecta não só a forma da língua portuguesa, mas o nosso pensamento: com ele seremos levados, imperceptivelmente, a pensar de outro modo, mesmo se, aparentemente, a semântica permanece intacta. É que, além de ser afectiva, a ortografia marca um espaço virtual de pensamento. Com o AO teremos, desse espaço, limites e contornos mais visíveis que serão muros de uma prisão, onde os movimentos possíveis da língua empobrecerão. Como numa suave lavagem ao cérebro.»
Em Portugal, criam-se comissões para avaliar questões fracturantes, e chamam-se os mais abalizados peritos para darem pareceres. Os pareceres são dados, mas se estes colidirem com o quero, posso e mando dos governantes, há que descartá-los, esquecê-los, atirá-los ao caixote do lixo, para que se imponha o que APENAS os todo-poderosos governantes têm previamente concertado. E estas comissões acabam por ser, além de dispendiosas, completamente inúteis, existem apenas para inglês ver. E esta é uma atitude típica das ditaduras fantasiadas de democracias.
O que está por detrás desta atitude prepotente, não está no segredo dos deuses. Todos os que têm lutado pela defesa da Língua Portuguesa conhecem bem os enredos sórdidos desta tirania, e têm-nos denunciado recorrentemente, por onde podem, porque no meio mais abrangente – o das televisões – é assunto tabu, e o silêncio de Marcelo Rebelo de Sousa, a este respeito, ele, que fala de tudo, ou quase tudo, todos os dias, em todo o lado, quase ao mesmo tempo, de tão indiciador é absolutamente incompreensível e inaceitável, algo que o fará entrar para a História como um dos coveiros da Língua Portuguesa.
O que Dom Diniz iniciou com glória, Marcelo Rebelo de Sousa terminará com desonra.
Já estamos fartos deste jogo, que se joga nos bastidores da política, escondido do escrutínio dos Portugueses. Basta de andarem a brincar aos democratazinhos, ao encherem a boca com somos um Estado de Direito e uma Democracia, quando, na realidade, somos um profundo estado caótico, onde democracia é apenas uma palavra esvaziada do seu significado mais primordial.
Posto isto, e na sequência do repto lançado aos Portugueses Pensantes, para que subscrevam um APELO a enviar ao Presidente da República, para que este faça cumprir a alínea nº 3, do Artigo 11º da Constituição da República Portuguesa, e no âmbito da celebração da Língua Portuguesa, a efectuar neste Blogue, no próximo Dia 10 de Junho, Carmen de Frias e Gouveia, Mestre em História da Língua Portuguesa e doutoranda na mesma área, deu-me a conhecer o seu preciso e precioso parecer que, em 2017, enviou à XII Comissão da Assembleia da República, o qual NÃO foi levado em conta, aliás como todos os outros doutos pareceres que se apresentaram a quem de direito, e quem de direito simplesmente os desprezou, por motivos que devem ser democraticamente explicados ao Povo Português.
Aqui deixo, aos meus caros leitores, o link para esse parecer, e mais dois links para as suas intervenções em 2015 e 2018, as quais também foram desprezadas ditatorialmente, porque apenas ditatorialmente se desprezam intervenções e pareceres válidos, quando está em jogo a DEFESA do nosso maior património identificativo: a Língua de Portugal.
«Ao Ex.mo Senhor Coordenador do Grupo de Trabalho de Avaliação do impacto do Acordo Ortográfico de 1990 e aos Ex.mos Senhores Deputados que o integram (12ª Comissão da Assembleia da República)»
Carmen de Frias e Gouveia - A (in)viabilidade do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990... (2015)
https://www.youtube.com/watch?v=w8loVrmdtME
Dra. Carmen de Frias e Gouveia - Da inutilidade do "novo" Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. (2018)
https://www.youtube.com/watch?v=ktbQbjMbtgg
Isabel A. Ferreira
«Sophia, que era declaradamente contra o Acordo Ortográfico, foi “adaptada” a ele numa edição recente que no resto não o respeita. Faz isto qualquer sentido?» (Nuno Pacheco in Jornal Público)
Não é só o livro “A Menina do Mar” que está acordizado. Todos os outros livros de Sophia para a infância foram acordizados, pelo motivo parvo que mais abaixo é referido (e está a negrito). Vi-os na Feira do Livro do Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, deste ano. Feriu-me a alma ver as obras para a infância, de Sophia de Mello Breyner, acordizadas, pela porto editora, assim em letras minúsculas, à acordês. Apeteceu-me comprá-los todos e ir queimá-los à rua. Mas não tinha onde queimá-los. Na próxima, providenciarei uma lata e queimá-los-ei, como lixo, não pelo conteúdo, que, para mim, é sagrado. Mas pela forma: um insulto à memória de Sophia. Um insulto à Língua Portuguesa. Um insulto às crianças portuguesas, as quais são forçadas a desaprender a própria Língua Materna, até porque o AO90 é uma fraude, não está em vigor, e ninguém é obrigado a aplicá-lo. E um livro em acordês, não é um LIVRO: é um conjunto de meras folhas de papel. (Isabel A. Ferreira)
«Sophia, “A Menina do Mar” e as partidas dos meninos da terra»
Um texto de Nuno Pacheco, no Jornal Público.
«Está a chegar ao fim o ano em que se têm vindo a celebrar os centenários do nascimento de Jorge de Sena (1919-1978) e Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004). E se em Setembro essa celebração os juntou em pelo menos dois momentos (um colóquio no Brasil, no Rio de Janeiro, e um ciclo na Cinemateca, dedicados a ambos), agora é a vez dos Encontros Imaginários criados no grupo de teatro A Barraca darem voz a um “diálogo” entre os dois, com Maria do Céu Guerra a encarnar Sophia e José Manuel Mendes na pele de Jorge de Sena. A moderação, como sempre, cabe ao criador destes encontros, o encenador Helder Costa. Dia 16 de Dezembro, às 21h30.
Falando apenas de Sophia, este último trimestre tem sido pródigo em apontamentos sobre a sua vida e obra. Matosinhos dedicou-lhe um dia, na Biblioteca Municipal Florbela Espanca (onde agora, de 6 a 8, celebra Sophia e Sena na Festa da Poesia). E o Centro Cultural Vila Flor, de Guimarães, recebeu a adaptação para teatro e música do conto A Menina do Mar, pelo Teatro do Eléctrico, com encenação de Ricardo Neves-Neves e direcção musical de Martim Sousa Tavares (neto de Sophia). Anuncia-se ainda para 13 de Dezembro o espectáculo multimédia O Mundo de Sophia, pela Lisbon Poetry Orchestra, no Auditório Renato Araújo da Universidade de Aveiro. É o queimar dos últimos cartuchos. Oxalá não lhes suceda, depois, o silêncio.
Mas ainda falando de Sophia, foi recém-lançada uma “edição muito especial” do conto A Menina do Mar, pela Valentim de Carvalho. E o “muito especial” justifica-se por juntar àquele que foi o primeiro livro infantil de Sophia (de 1958) duas leituras dramatizadas distintas: a que dele fizeram, em 1961, os actores Eunice Muñoz, Francisca Maria, António David e Luís Horta, com direcção de Artur Ramos e música de Fernando Lopes-Graça (aqui incluída em CD); e o espectáculo estreado em Fevereiro no São Luiz, em Lisboa, interpretado por Carla Galvão e Filipe Raposo (ao piano) a partir de música de Bernardo Sassetti (1970-2012), com direcção de Paula Diogo e animações de Beatriz Bagulho, também chamada a ilustrar o livro (o espectáculo surge aqui em DVD). Para dar um ar ainda mais “especial” à edição, pensada e produzida por Rui Portulez, o texto introdutório é de Marcelo Rebelo de Sousa, que sublinha estarmos perante “diferentes leituras, diferentes gerações e diferentes métodos de revisitar um texto fundador.”
A única estranheza resulta desta pequena nota incluída na ficha técnica: “Considerando a sua possível leitura em contexto escolar, este livro respeita as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assumindo a Porto Editora a responsabilidade desta adaptação”. É curioso, porque nem a ficha nem o texto do Presidente da República têm essa preocupação, lendo-se, neles, palavras “proibidas” como “direcção” ou “espectáculo”. Será porque pensam que estes não serão lidos “em contexto escolar”? Vamos então conferir o trabalho de adaptação feito no texto original de Sophia. “Hei-de” passou a “hei de”; “Outono” a “outono” (3 vezes); “Verão” a “verão”; “Primavera” a “primavera” (2 vezes); “Inverno” a “inverno”; “projecto” a “projeto”; “vêem” a “veem”. E é só. Dez alterações, ao todo. Justificava o trabalho? Justificava a nota?
Aqui podem sempre brandir-se dois argumentos. Um, a favor do Acordo, que dirá: estão a ver, quase não se nota. Outro, contra, que oporá: se quase não se nota, para quê mexer? Sobretudo quando se sabe que Sophia foi declaradamente contra o Acordo Ortográfico? Teve até uma argumentação em dez pontos, em entrevista ao JL, em 1991. Recordemo-la, na íntegra:
“1. A cultura é feita de exigência e este acordo é feito de transigência. 2. Vai alterar, em muitos casos, a dicção oral. 3. Vai desfigurar o carácter emblemático e a estética da escrita. 4. Vai-nos separar da tradição grega e latina e, assim, para os estrangeiros que falam línguas românicas, o Português vai-se tornando mais difícil. 5. Vai destruir a modulação das vogais, tornando algumas delas surdas. 6. O acordo nada unifica, pois constantemente recorre a alternativas. 7. A escrita nunca pode coincidir com a fala. 8. A ortografia pertence ao número de coisas que só raríssimas vezes devem ser modificadas, pois também na forma gráfica nos reconhecemos. 9. É verdade que as línguas evoluem, mas evoluem dentro das leis que lhes são próprias e segundo o espírito criador do tempo. O mesmo é verdade para a escrita que, por isso, não pode ser modificada por comissões nem por estratégias políticas. 10. A única palavra portuguesa cuja ortografia precisa de ser mudada é dança que se deve escrever com ‘s’ como era antes, porque o ‘ç’ é uma letra sentada.”
Tirando esta última sugestão poética, que os defensores do Acordo costumam usar como caricatura, a argumentação de Sophia é clara. Corrigi-la postumamente é indefensável, pelo que o livro, para honrar a sua memória, deveria ser mantido na grafia original da autora. Porque não são as dez palavrinhas que estão em causa, mas sim uma questão de princípio. Ou sugerem atirar à fogueira as edições anteriores, não vão as crianças ter um choque ao lê-las?»
Fonte:
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