Quem o diz é Alexandre Borges, escritor e argumentista, candidato a deputado à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, pela Iniciativa Liberal.
Hoje, dia 21 de Fevereiro, dia em que o mundo celebra as Línguas Maternas, fiquemos com o texto «Erradicar o Português: ponto de situação», no qual Alexandre Borges faz uma reflexão bastante pertinente sobre esta questão.
E enquanto o mundo celebra, nós Portugueses, caminhamos praticamente sobre o cadáver daquela que foi a nossa Língua Materna durante 800 anos; hoje deitamos fora a língua erudita que tivemos a felicidade de herdar do império romano, para pegar numa língua bárbara, minimal e monolítica, incapaz ao menos de conjugar um verbo (I love you – Eu amar tu», diz Alexandre Borges.
Não podia estar mais de acordo com Alexandre Borges.
Isabel A. Ferreira
Por Alexandre Borges
«Erradicar o Português: ponto de situação»
O português vem doutro tempo, quando se andava mais devagar e sonhava com outras coisas. Foi válido durante 800 anos, de Dom Dinis ao meu avô Grimanez. Mas, de repente, o mundo decidiu que já chega.
20 Fevereiro 2021
Tenho a certeza de que sabe que estamos praticamente a caminhar sobre um cadáver. Que nos sirvamos do Português roça a profanação de sepultura – deveria dizer: a necrofilia? A língua portuguesa caminha para a extinção mais depressa do que o rinoceronte e, no fim, embora possamos sempre resguardar em cativeiro porventura um bibliotecário macho e uma linguista fêmea, ou vice-versa, com vista à continuação da espécie, eu não depositaria demasiada fé na operação. Sabe-se lá que língua falarão então. E que líbido lhes restará.
Não culparei o infame acordo ortográfico, nem o Instituto Camões, nem as telenovelas, nem os sucessivos governos, nem as pessoas com necessidades especiais que a televisão filantropicamente emprega na inserção de caracteres com vista à criação no indivíduo de um sentimento de dignidade e amor-próprio. Não culparei os professores, nem os alunos, nem os Brasileiros, nem os Portugueses, nem o fado, nem o kuduro, nem ao menos a quizomba, nem necessariamente a televisão, que é capaz de ainda morrer primeiro. O português está prestes a bater a bota pela mesma razão que todas as outras línguas que não o inglês estão prestes a bater a bota: a monocultura do sucesso.
O que é a monocultura do sucesso? A forma mais curta que o presente autor encontrou de descrever a convicção generalizada de que: a) a felicidade individual é não só possível como o objectivo último da vida; b) a felicidade reside no sucesso; e c) há uma e uma só forma de lá chegar. E essa forma implica teses estruturantes como o trabalho estar acima de tudo e o crescimento ser um fim em si mesmo, e outras aparentemente acidentais, mas de que ninguém abdica, materializadas num comportamento de rebanho ou manada, e que significam, mormente: comermos todos a mesma coisa, fazermos todos o mesmo tipo de exercício, consumirmos todos o mesmo entretenimento, visitarmos todos os mesmos lugares, falarmos todos a mesma língua, através até das mesmas expressões.
Catastrofismo, dirá. Ou bullshit, quem sabe? Digo-lhe que não. Que vamos erradicar o português em poucas gerações. Extirpar da face da Terra essa chatice das línguas estrangeiras e das traduções. E não será preciso qualquer ditadura; fá-lo-emos por vontade própria.
Pense no que está no seu top of mind. Se tem ou não tem a drive. Nesse mindset. Estará na cloud? O importante é estar sempre on. Viu o mail? Foi ao chat? Recebeu o briefing. Fez o debriefing. Teve atenção ao target e ao benchmark. Fez o brainstorm com vista ao break-even. O problema é o budget. Mas pense no ROI. Não tem business plan. É um B to B; não um B to C. Não ouviu o chairman? É o nosso core business. Tem de experimentar o coaching. Falta-nos mentoring. Trabalha em cowork. Conseguiu com crowdfunding. Mas não se esqueça do deadline. Recebeu o forward? Agora, faça o follow-up. Dê-nos feedback. E cuidado com o gap.
É uma questão de know-how. A ninguém já interessam qualidades, capacidades ou atributos; somente as skills. Não há fundadores nem criadores; há founders. Já não se conhece pessoas; faz-se networking. Ninguém abre uma pastelaria; tem uma startup. E há o pitch, os players, o spin, o spin-off, os stakeholders, o take off e o set up. O importante é rodear-se dum staff multitasked que entenda as trends, mas pense out of the box. E escolher bem o timing na hora do kickoff.
Confesse lá. Quantos destes termos não percebeu realmente? Quantos não usou na última semana, para não dizer hoje mesmo?
E o pior é o desgaste. O stress. Sim, sim, vimos o que fizemos aqui: o stress. Até isso. Em inglês. Poderia ser outra língua, poderia ser outra filosofia. Pense no francês. Lembra-se de quando era o francês o grande influenciador – influencer? – da língua e cultura pátrias? Ó saudade. O bâton, o parfum, a patisserie, o chauffer, o coiffeur, o robe de chambre, a lingerie, o soutien, o boudoir, a boîte, a bohème – as coisas realmente importantes da vida. A chaîse longue, Jesus Cristo, a chaîse longue! A delicadeza, a classe, a preguiça, a demora, a textura de cada palavra destas… Quão longe estávamos do frenesim ruidoso e áspero do think tank e das conference calls, das talks, do downsizing, das key words e dos highlights. Que se passa com essa gente que desce uma rua nas Olaias como se desfilasse para fora dum filme em Wall Street? Ao diabo o corporate e as commodities. Até para descansar é preciso comprar o pack e ir em jeans e t-shirt para o resort, mais o trolley, o tablet, os phones e o streaming.
Está tudo perdido? Claro que está. Estamos on the same page. Diz o report. Precisamos de team building. Tudo ASAP. E até quando rebentamos, já não temos esgotamentos; temos burnouts.
E os trainees, as brands, os accounts e os assets. O cash-flow, a mailing list, o background, o merchandising e o mainstream.
Ide à meretriz que vos pôs no mundo hypes, bits, beats, spots e hipsters, blogs, posts, comments, shares, views, hits e likes. O sentido da vida é agora contabilizável, FYI – For your Information – possivelmente em KPIs – key performance indicators (in case youdon’t know). Soft sponsoring, product placement e hard sell, vão ler Eça e encher-se do que de mais haja na choldra.
Mando o layout assim que tiver os teus inputs. Seguindo as guidelines internacionais e os insights locais. Tudo premium, evidentemente. A guita segue em attachment, como vi no showroom, diz o slogan, e o claim, no outdoor, online e offline, se não for para o spam, como aprendemos no workshop. O approach foi acordado com o departamento de research e tem em conta o pipeline e o workflow. Tudo para o melhor outcome.
Querer dormir e acordar, comer e beber, ler e contemplar, estar bem com o que se tem. Não ter urgência alguma de ir descobrir o que ainda não se conhece nem explorar todo o nosso potencial escondido – ó crimes capitais! Aproveita o coffee break, ou o out of office, e fala naquela língua ainda pior, bastarda, filha do inglês e do português, e que diz coisas que dariam ao Camões, se ainda cá estivesse, vontade de vazar a outra vista só para não ter de as ler, como: “mandatório”, “empoderamento” ou “customizável”.
O português está por um fiozinho – não vá cá em conversas de lusofonias e cêpê-élepês. Hoje mesmo, amiúde, já só serve para ligar estes conceitos. Substantivos e adjectivos já foram colonizados pelo inglês; os verbos para lá caminham (veja o googlar, o brandisar ou – desculpa, Camilo, as voltas na tumba – o spoilar); ao português, em breve, não restarão mais do que preposições, conjunções e meia dúzia de advérbios. E não se perder em grandes elaborações frásicas, que, para garantir que o receptor percebe o que queremos que sinta, estão lá os emojis.
E o meu problema, caro leitor, não é sequer só o estar de serviço na hora em que vemos esboroar diante de nós uma língua com 800 anos como quem implode um prédio devoluto na Amadora (com o devido respeito pelo povo irmão da Amadora); é ver a que lhe toma o lugar. Deitamos fora a língua erudita que tivemos a felicidade de herdar do império romano, para pegar numa língua bárbara, minimal e monolítica, incapaz ao menos de conjugar um verbo (I love you – Eu amar tu.) Uma língua que, circunstâncias do tempo, evoluiu na boca daqueles que implantariam a dita monocultura do sucesso, do triunfo pessoal. E eis porque uma pessoa lê os termos inscritos neste texto e fica com palpitações. Em que outro idioma poderia ter nascido uma palavra como “workaholic”?
O português vem doutro tempo, quando se andava mais devagar e sonhava com outras coisas. Foi válido durante uns bons 800 anos, de Dom Dinis ao meu avô Grimanez. Mas, de repente, o mundo decidiu que já chega. O mundo em que ler os 10 resultados da primeira página de resultados do Google é investigação que chegue praticamente para um doutoramento. O mundo em que já não há sapateiros, mas sobram chief operating strategy officers. O mundo em que o palavrão é um dos últimos redutos de verdade entre um falante e a respectiva língua materna.
Sim, ilustre desconhecido que me lês. O foda-se ainda há-de ser o nosso porta-estandarte. Carregar a bandeira do português contra todos os smarts, low costs, take-aways, call centers, old school, fast
food, clusters, CEOs, CFOs, partners, managers, consultants, advisors, foodies, selfies e dumpings, gajos do running e do gaming e do cross-fit e do snorkeling.
Foda-se. Deixem-me em paz com o meu Alberto Caeiro e a minha preguiça. A vida também é feita de latas de atum e tédio. Podemos declará-lo no LinkedIn? A linguagem chegará sempre demasiado tarde para explicar o mundo – qualquer filósofo depois de Wittgenstein o dirá. Deixem-nos ficar uma língua ao menos para quando não queremos ser compreendidos.
Alexandre Borges
Fonte:
. «A língua portuguesa cami...