Quinta-feira, 17 de Abril de 2025

«‘sam-de-kid’, ou 100 maneiras de chamar burro a um asno» - Um admirável texto de Brás Cubas, em defesa da Língua e da Gramática Portuguesas

 

in 

Capture.PNG

é um órgão de informação, vocacionado sobretudo para a investigação jornalística e para a análise e reflexão de assuntos da actualidade com o objectivo de promover o debate público sobre temas de interesse social.

É uma publicação online e digital independente, apartidária, não doutrinária e sem qualquer orientação ideológica ou de qualquer outra natureza.

Fonte do texto:

https://www.paginaum.pt/2025/04/14/sam-de-kid-ou-100-maneiras-de-chamar-burro-a-um-asno

***

‘sam-de-kid’, ou 100 maneiras de chamar burro a um asno

 

Brás Cubas.PNGBrás Cubas|14/04/2025

 

Dizia-me certo velho frade de Santo Agostinho — homem de escassa cabeleira, mas longas latinadas, embora erudito — que a verdadeira ignorância nunca se apresenta sozinha, mas surge sempre com ar grave de sabedoria alheia, qual papagaio em toga. E como as moscas que invadem a casa, os cães que se aventuram pela Igreja e os burros que se embrenham na biblioteca, não pedem licença: mas zumbem, ladram e zurram como se tivessem caiado as paredes, cinzelado os turíbulos e redigido os códices.

 

Serve este célere intróito para declarar — com o espanto comedido de quem já viu um bispo tocar maracas numa homilia — que, mesmo sabendo disto, nem nos tempos em que me dava à metafísica da modorra e ao tédio da razão imaginei assistir ao dia em que um vate de microfone, de nome Sam the Kid (o qual, diga-se, soa a detergente juvenil ou a suplemento vitamínico para cérebros anémicos), se proclamaria legislador da língua portuguesa.

 

 

Ou, melhor dizendo, um sintactólatra — termo que aqui crio para designar o sujeito possuído por um fervor gramatical egocêntrico, crente de que a sintaxe se curva à sua própria batida.

 

Este cidadão da rima fácil, que julga que o génio se mede em decibéis e que a eloquência se alcança com boné de pala e pose de apóstolo suburbano, resolveu arrogar-se autoridade filológica — só porque encontrou, entre os becos da academia, um professor de Letras, um tal Marco Neves, que julga ser vanguarda dar aulas ao lado de um rapper, numa espécie de catedrático-da-bandalheira.

 

Pois veio agora Samuel Mira, o ortónimo do bardo do beat, com ufania digna de um Napoleão de capuz e sneakers, que tem o “direito” de forjicar a sua própria gramática. Disse — pasme-se, leitor já habituado ao circo — que não há mal algum em dizer facar, quando o verbo correcto é esfaquear; que se pode muito bem dizer altivismo, mesmo sabendo que se diz altivez — e fá-lo, presume-se, por um acto de resistência semântica, como quem grafita erros em paredes sintácticas —; e que até o já célebre há-des (esse grito de guerra dos ignorantes com convicção) deve ser aceite como legítimo, pois, segundo o novo cânone do desleixo militante, já é “tão usado, há tanto tempo, por tanta gente”, que já ganhou o direito consuetudinário à parvoíce instituída. Sim, “na boa”. Sim, porque neste novo regime linguístico — uma espécie de República Popular da Prosódia Desviante —, a frequência substitui a correcção, o erro reiterado passa por inovação, e a ignorância, desde que tatuada em rima e projectada por colunas com subwoofer, transforma-se em decreto.

 

 

E com ares de profeta suburbano, misto de seminarista da quebrada e condestável do calão, o Sam ainda avisa — entre trejeitos, poses e meneios coreográficos —: “Respeita a minha gramática”, com o tom ameaçador de quem saca de uma esfaca para te facar caso ouses questionar a vontade soberana do kid.

 

Trata-se, pois, não de uma revolução séria — dessas com tochas, tambores e tratados —, mas de uma rebelião gramatical de pantufas, conduzida por um gramaticida doméstico, um lexicofractário de rima solta, um seditionário da sintaxe armado de boné e ego ampliado por reverberação digital. Sam the Kid não ergue barricadas com livros, mas com podcasts; não cita Quintiliano, mas berra punchlines — com fúria e convicção — como quem confunde a ablativa latina com o abanar da cabeça.

 

Como profeta do erro consagrado, ergue-se aqui um Moisés do calão, abrindo o Mar Vermelho da ortografia com a tábua do “porque apetece-me”. Acredita ele piamente que o idioma é um plasma moldável, um slime linguístico onde se enfiam os dedos e se inventa, ao sabor do beat, uma nova morfologia: mais flexível que um pronome indefinido, mais líquida que uma preposição num copo de plástico. Ah, se Camões erguesse a cabeça! Tê-lo-íamos a duelar com rimas afiadas como lâminas. E se Vieira ainda soprasse no púlpito da lógica, havia de fulminar tal criatura com sete sermões e oito exorcismos.

 

Mas regressemos ao ponto: a língua, senhor Kid, não é uma coutada privada, nem um brinquedo de vaidades momentâneas. A língua é um corpo vivo, sim — mas vivo porque tem ossatura, nervos, coração e memória. E a sua vitalidade não provém de abastardar-se com “há-des” e “altivismos”, mas de se reinventar a partir do que é nobre, fecundo e belo. Só um néscio com pretensões a doutrinador popular é capaz de confundir plasticidade com palermice.

 

 

Ainda ousas perguntar quem é o dono da palavra, sugerindo que como pertence ao povo, és o seu representante – logo, tens carta branca. Pois escutai agora, em nome do mais finado e ressuscitado dos prosadores: a palavra, meu caro trovador de calão e beatbox, não tem dono, é certo — mas tem tutela. Está sob a guarda severa da razão, da tradição e do bom senso, esses velhos juristas do vernáculo que zelam pela dignidade da língua como um mordomo inglês vela por uma prataria centenária. Não se lhe chega de boné ao contrário, nem se lhe transmuta a ortografia como quem troca de sapatilhas — sob pena de a converteres, não em arte, mas em charada.

 

Queres ‘gramaticalizar’ o mundo à tua maneira? Muito bem — também o lunático na enfermaria desenha mapas novos da Terra com feijões e cotão, mas ninguém por isso lhe encomenda um atlas.

 

Dir-me-ás talvez que a língua é viva, que se reinventa, que floresce nas ruas como erva daninha. Concedo. Mas mesmo a erva daninha tem nome botânico e regras de poda. O latim deixou-nos raízes, declinações e ordem — não para nos tolher a alma, mas para nos evitar a vergonha de dizer “há-des” em pleno Senado da lógica.

 

Queres inventar palavras, substituir vocábulos existentes por gírias ocas, julgando que descobres a pólvora linguística? Pois te digo: a língua, como o amor, não precisa de novas posições a cada minuto para provar que é criativa. Às vezes basta declinar bem o verbo ‘respeitar’ — sobretudo quando se fala de palavras que vêm de Homero, de Camões ou de Vieira.

 

 

Queres ser dono da palavra? Merece antes ser servo dela, pois só quem a serve com rigor, com humildade e com leitura é que pode, um dia, quiçá, ser admitido à sua mesa — e talvez, só talvez, autorizado a pôr-lhe um novo talher.

 

Não queiras cair no ridículo de inventar vocábulos numa língua que possui mais de um milhão — sim, mais de um milhão! — de termos já cunhados, polidos, declinados e redimidos por séculos de uso, abuso e génio. Uma língua que foi cultivada por Camões, lavrada por Vieira, ordenada por Bluteau, enobrecida por Garrett, tresvariada por Pessoa e reinventada — quando necessário, e só quando necessário — por mestres que sabiam a diferença entre neologismo e narcisismo. Antes de presumires que falta à língua uma palavra, considera se não será a tua cabeça que tem vocábulos a mais e leitura a menos.

 

Contempla a elasticidade, plasticidade e riqueza desta língua de séculos, caro Samuel. Vede, por exemplo, para burro — esse monumento à teimosia encadernada —, consigo dizer-te noventa e nove, bem contados, vocábulos:

 

abécula, abobado, abestado, abombado, acéfalo, alarve, anta, aparvalhado, asinino, asno, atabalhoado, atrasado, atoleimado, avantesma, aselha, babaca, babão, bacoco, balordo, baralhado, baré, barranqueiro, basbaque, basofo, badano, beócio, boçal, bobinho, bobo, bocó, bodó, bronco, bruto, cabeçudo, calhau, canhestro, carolo, choné, chucro, cromo, desassisado, desmiolado, desorientado, desprovido, destrambelhado, energúmeno, entaramelado, estólido, estorvo, estroina, estúpido, estulto, fátuo, gagá, galfarro, ignaro, idiota, imbecil, inapto, inepto, insensato, inútil, jegue, labrego, lerdaço, lerdo, lorpa, matóide, mentecapto, néscio, obtuso, pacóvio, palerma, papalvo, panaca, panhonha, parvo, pascácio, paspalhão, paspalho, pateta, patego, pachola, simplório, sandeu, tapado, tanso, toleirão, tolinho, tolo, tonto, trambolho, trengo, zarolho; zurrador.

 

Não queiras tu, com diatribes linguísticas — meio freestyle, meio fricassé —, que o teu pseudónimo enriqueça, sob forma etimológica e fanhosa, a língua portuguesa. Porque se insistes muito, ainda verás, em futura edição do vocabulário, uma entrada assim grafada:

 

 

sam-de-kid, s. 2g. — Indivíduo compelido a paroxismos de jactância analfabeta, fenómeno linguístico em que, munido de rimas pobres e confiança desmedida, este se proclama guardião da língua enquanto a espanca em praça pública. Designa também o acto de misturar ignorância gramatical com convicção artística, quando se acredita que o solecismo, se berrado ao microfone, se transforma em estilo. Frequentemente associado a declarações de amor à língua portuguesa que envolvem a omissão do sujeito, a morte do predicado e um enterro do clítico com beat de fundo.

 

E o verbete figurará entre “asinice” e “atrocidade”, como quem ocupa o lugar do meio numa ceia de equídeos. Tem dó, Samuel: não bastava à pobre mula já carregar sobre o lombo o peso da ignorância humana — agora arrisca suportar também o teu ego sem dicionário. Cuida de ti: e não te esforces em demasia, porque se insistes em revolver a gramática com as patas do capricho fonético, és capaz até de destronar o próprio burro, relegando-o a um simples quadrúpede sensato, ao pé da tua acéfala arrogância de bípede com manias de poeta e legislador. E então aí, burro passará a ser somente o centésimo sinónimo possível de sam-de-kid.

 

Até breve, e um piparote  

Brás Cubas

 

N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

 

As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

Partilhe esta notícia nas redes sociais.
 
 
 
 
 
publicado por Isabel A. Ferreira às 16:25

link do post | comentar | adicionar aos favoritos
partilhar
Segunda-feira, 8 de Abril de 2024

Em Defesa da Ortografia (LXVII), por João Esperança Barroca

 

«Eu sou contra o Acordo Ortográfico. Por isso, até me prenderem ou me darem cacetadas, escrevo em português antigo. E mesmo depois de prenderem e de me darem cacetadas.»

 

Nuno Markl, Humorista, locutor e escritor

 

«O acordo ortográfico é uma merda. A Academia [Brasileira de Letras] é uma excrescência de velhos tempos

 

Millôr Fernandes, Humorista e escritor brasileiro

 

«A confusão entre gramática e convenção leva a muitos enganos — como defender o Acordo Ortográfico porque a língua muda (pois muda, mas a ortografia não tem de mudar à força) […]. O acordo ortográfico trouxe confusão à ortografia e, nesse ponto em particular, estamos pior do que estávamos há 10 ou 20 anos. É um dado objectivo, que pode ser atestado pelo número absurdo de “fatos” que aparecem no Diário da República.»

 

Marco Neves, Tradutor, escritor e professor universitário

 

 «Contrariamente ao muito que se diz por aí, as alterações que vão ser introduzidas são muito poucas e julgo que basta uma meia hora para os professores aprenderem as novas regras. E depois é aplicá-las.»

 

Paulo Feytor Pinto, presidente da Associação de Professores de Português (APP), 02-09-2009  Diário Digital.

 

Em escritos anteriores, temos chamado a atenção dos caros leitores para todo o tipo de aberrações que têm visto a luz do dia, à boleia do inadjectivável AO90. Não será por acaso, como já o dissemos anteriormente, que Millôr Fernandes, numa das citações em epígrafe, tenha optado por um substantivo em detrimento de um adjectivo quando o seu propósito era o de caracterizar negativamente o dito acordo.

 

Neste escrito de Março, a nossa pesquisa centrou-se essencialmente no termo contato, que a par de fato, é uma verdadeira pedra-de-toque da cacografia. Limitámos, desta vez, a nossa pesquisa a um único órgão de comunicação social, o jornal O Minho, contra o qual nada nos move. Apenas queremos, mais uma vez, denunciar o infindável sem-número de atropelos, decorrentes da aplicação do AO90. Acrescentamos ainda que a maior parte das citações e das imagens são relativamente recentes, comprovando que vieram para ficar. É ainda imperioso mencionar que este tipo de erros não existia antes da aplicação forçada do inaplicável AO90.

 

Vejamos, então, os resultados de uma breve pescaria numa tarde de fim-de-semana:

 

  1. «No dia da visita/teste à viatura o suspeito contata o legítimo proprietário, informando que não será ele a ver o veículo, mas sim outra pessoa, pedindo-lhe para não mencionar valores monetários. Após a visita efetuada, o suspeito informa o legítimo proprietário que quer comprar a viatura e que lhe irá efetuar uma transferência bancária, enviando-lhe um comprovativo de transferência bancária (não efetivada).» O Minho, 02-03-2024

 

  1. «“A ambição para o novo escritório de Braga não se limita às 100 pessoas que pretende contatar nos próximos 12 meses, tendo objetivos de crescimento para a cidade acima das 500 pessoas num horizonte de quatro anos”, referiu o comunicado, enviado às redações no mês de outubro de 2023.» O Minho, 23-02-2024

 

  1. «Os fundos esperam que os contatos para a venda comecem em breve, com o objetivo de finalizar a transação até (sic) o verão.

[…] As autoestradas geridas pela concessionária têm experimentado aumentos médios anuais no tráfego de 12% desde 2011, sendo impulsionadas pelo fato de servirem como uma alternativa ao congestionamento na VCI, no Porto.» O Minho, 22-02-2024

 

  1. «Para a distrital, esta é “uma forma diferente de fazer política, com o contato directo e permanente com as pessoas e garantindo que tudo será feito para ir além do resultado histórico nas próximas eleições, e levar André Ventura a ser o próximo Primeiro-Ministro de Portugal”. O Minho, 03-02-2024

 

  1. «Após vários contatos com diversas fontes, O MINHO sabe que tanto a comissão política distrital do Chega como a concelhia não confirmam Eduardo Teixeira a concorrer por aquele partido.» O Minho, 25-01-2024

 

  1. «“A ambição para o novo escritório de Braga não se limita às 100 pessoas que pretende contatar nos próximos 12 meses, tendo objetivos de crescimento para a cidade acima das 500 pessoas num horizonte de quatro anos”, refere o comunicado.» O Minho, 11-10-2023

    

  1. «Segundo a SIC Notícias, a jovem estava no festival pela Paz, que foi invadido pelas forças do grupo palestiniano no último sábado. A última vez que a mulher entrou em contato com a família foi ainda na sexta-feira. O Minho, 09-10-2023

 

  1. «O programa também alerta que entre as espécies de gelatinosos que ocorrem em Portugal, esta é a que exige maior cautela, devendo ser evitado qualquer contato com os seus tentáculos urticantes, capazes de provocar fortes queimaduras.» O Minho, 21-08-2023

 

Ah, repare na semelhança entre as citações números 2 e 6. O erro atrai o erro, não é?   Os revisores fazem falta, não é?

 

Ah, seguindo o conselho expresso na citação número 8, é de evitar o contacto com esses seres gelatinosos e com uma ortografia incoerente, ilógica, incongruente e desrespeitadora da sua etimologia.

 

Ah, quantas meias horas há em catorze anos?

 

Ah, além de se perceber que esta ortografia só pode ter tido origem em gente sem tacto, não podemos deixar de referir o fato que impulsiona aumentos de tráfego. Sabe o leitor onde se vendem tais fatos e semelhantes fatiotas? Que estes fatos custam caro, temos absoluta certeza!

 

João Esperança Barroca

 

J BARROCA 1.png

J BArroca 2.png

 

publicado por Isabel A. Ferreira às 15:30

link do post | comentar | adicionar aos favoritos
partilhar
Quinta-feira, 9 de Fevereiro de 2023

«Em Defesa da Ortografia (LVI)», por João Esperança Barroca

 

«A corrupção é tanta que até já gamaram o P à palavra corrupto.»

Pedro Correia, Autor e jornalista

 

«Preservar este secular idioma passa pela revalorização de vocábulos antigos e pelo combate ao portinglês que nos invade, mesmo quando surge disfarçado de português (é o caso do anglicismo “evento”, hoje omnipresente). E por darmos luta sem tréguas ao chamado “acordo ortográfico”, que decretou a separação de famílias lexicais (lácteo mas laticínioepilético mas epilepsiatato mas táctil), inventou termos aberrantes (como corréu em vez de co-réu ou conavegador em vez de co-navegador) e substituiu a regra pelo arbítrio (uma trapalhada em que materno-infantil coexiste com infantojuvenilbissetriz com trissectrizcor-de-rosa com cor de laranja).»

 

Pedro Correia, Autor e jornalista, a propósito do livro Por Amor à Língua, de Manuel Monteiro

 

«O principal argumento contra o Acordo Ortográfico é a sua inutilidade. As dificuldades de leitura de textos da outra variedade da língua nunca estão relacionadas com a ortografia, as diferenças são outras. Para mudar a ortografia tem de haver uma razão muito forte, e eu não encontro aqui essa razão. As questões fiscais do comércio de livros entre Portugal e o Brasil são uma barreira mais grave do que a barreira ortográfica.

A ortografia do Acordo tornou-se menos adequada à fonética tanto do lado brasileiro como do português. As consoantes mudas tinham uma razão de ser, assinalavam uma forma diferente de ler a vogal, o que tornou mais difícil a leitura de algumas palavras. O Acordo criou uma instabilidade na língua que levou à existência de erros como "fato", em vez de "facto", mesmo no "Diário da República".»

 

Marco Neves, tradutor, escritor e professor universitário, no programa "Palavras Cruzadas" (Antena 2, 16/01/2023)

 

«Como os professores estão nas parangonas nos jornais, é deles que hoje falarei. Na última Feira do Livro de Lisboa, veio ter comigo uma professora de Língua Portuguesa que se apresentou, entre outras coisas, como leitora deste blogue. Disse-me que sabia que eu não tinha simpatia pelo presente Acordo Ortográfico (AO) e entregou-me meia folha A4 com um texto em que se explicava sumariamente que as escolas vivem hoje um autêntico caos linguístico, coexistindo no ensino da língua portuguesa três grafias: a do português pré-AO, a do AO e ainda outra, que é uma mistela de ambas e em que tudo parece ser permitido. Os maiores prejudicados por esta situação serão, muito naturalmente, os alunos, que aprendem uma coisa num ano e outra noutro, vêem os pais escrever de forma distinta daquela em que estão a ser ensinados e são penalizados nas notas pelos erros que muitos pais e professores não acham sequer que sejam erros. Diz ainda a nota que os professores são os Cavalos de Tróia desta operação com a qual frequentemente não concordam, vendo-se obrigados a ir contra a sua consciência.»

Maria do Rosário Pedreira, Escritora e editora

 

«[…] eles olham, mas não vêem; escutam, mas não ouvem nem entendem

Mateus, 13:13-16

 

JoÃO 2.png

 

Na linha do nosso escrito de Janeiro, voltamos hoje a escrever sobre corrução e corruto. Parafraseando Ricardo Araújo Pereira, deverá ser uma estratégia da defesa de alguns arguidos acusados do crime de corrupção. Desta maneira, a pena a aplicar será sempre muito reduzida, tendo em conta a prática inócua do crime de corrução. Como o caro leitor, certamente, deu conta, o AO90 veio trazer novos erros, que vamos respigando dos órgãos de Comunicação Social e de outras instituições.

 

Pesquisando apenas no jornal Record, detectamos as seguintes ocorrências:

 

  1. a) «Diretor de comunicação do FC Porto compara casos de corrução no Benfica com o que se passou com Pedro Pinho.» Record, 04-05-2021;
  2. b) O procurador-geral de Trinidad e Tobago autorizou na segunda-feira a extradição para os Estados Unidos do antigo vice-presidente da FIFA Jack Warner, acusado de corrução, crime organizado e branqueamento de capitais pelas autoridades norte-americanas.» Record, 22-09-2015;
  3. c) «O ainda vice-presidente do Sporting foi acusado de vários crimes (corrução, abuso de poder, burla qualificada, denúncia caluniosa e participação económica em negócio) e ouvido no Tribunal de Instrução Criminal pela primeira vez a 12 de junho de 2012.» Record, 03-03-2015;
  4. d) «Luís Figo defende que “é tempo de Blatter sair da FIFA por causa dos problemas de corrução”. Num [sic] entrevista publicada no diário espanhol ABC, o candidato português à presidência da FIFA diz que o “relatório Garcia”, que investiu as alegações de corrução na atribuição dos Mundiais de 2018 à Rússia e 2022 ao Qatar “devia ser publicado e se não o é, será porque a FIFA receia alguma coisa”.» Record, 11-05-2015.

 

Há poucos dias, mão amiga enviou-nos a seguinte lista de aberrações, criadas pelo AO90: Corréu, neoestoico, consunto, conarrar, conavegar, interruptor, opticidade, retouretral, semirrei, tecnolectal, cocolaborador, cooócito, perento, cocredor, cocapitão, adocionismo, expetar, cocoleta, contraião, intrauterino, cofiador, coutente, conavegante.

 

Parece piada ou brincadeira, não é, caro leitor? Se é assim na Comunicação Social, como será com o cidadão comum?

 

Para mais uma vez ilustrar o caos ortográfico que se instalou, repare como se escreve (neste caso, o que está em causa é a utilização do hífen) num jornal de referência «A seleção de espécies feita pelos nossos biólogos reflete a vegetação natural existente dentro da cidade de Lisboa, como oliveira, alfarroba, folhado, sobreiro ou capuz-de-frade”, enumera Fabio Brochetta [da Urbem, organização não-governamental]» («Estão a nascer mini-florestas no Areeiro», Ana Meireles, Diário de Notícias, 20-01-2023, p. 15), divulgado no blogue O Linguagista

 

João 1.png

João 3.png

João 4.png

João Esperança Barroca

 

 

publicado por Isabel A. Ferreira às 15:21

link do post | comentar | adicionar aos favoritos
partilhar
Quinta-feira, 19 de Janeiro de 2017

«Acordemos, para desacordar de vez»

 

Por que será que os governantes portugueses se recusam a ouvir as várias vozes da mais racional Razão?

Um excelente texto para reflectir o malfadado AO90.

Acordem ó governantes adormentados!

 

NUNO.jpg

 

Texto de Nuno Pacheco

 in Jornal Público

 

«Que se cheguem à frente defensores e detractores do acordo, porque já chega de conciliábulos mornos. Que volte tudo à mesa

 

Neste Janeiro pleno de sol, eis que regressam as acaloradas discussões sobre a Língua Portuguesa. Voltou à RTP, na passada terça-feira, o magazine Cuidado com a Língua!; foi lançado um novo livro do tradutor, revisor e professor Marco Neves intitulado A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa (Guerra & Paz); e o PEN Clube promoveu no Goethe Institut, em Lisboa, no dia 9 de Janeiro, mais um debate sobre o acordo ortográfico (AO90). Aliás, é este último que mais promete dar que falar, com o anunciado "aperfeiçoamento" que a Academia de Ciências de Lisboa prepara e de que já foram surgindo alguns tópicos: regresso à diferenciação de "óptico-ótico" e de "pára-para", clarificação do uso dos hífens, reposição de consoantes ditas mudas (pelo menos as que permanecem no Brasil, caso de recepção-receção); ou revisão do uso dos sufixos pan- e com-. Haverá conciliação? Arriscando uma metáfora marítima, esta tentativa de "aperfeiçoamento" arrisca-se a ser vista por uns como um inadmissível rombo no navio, e por outros como o lançamento de bóias de ferro aos náufragos.

 

Recordando os alertas dos saudosos José Pedro Machado e Vasco Graça Moura, entre tantos outros que se cansaram de argumentar contra os perigos do "monstro" que aí vinha, é possível olhar para a tentativa da ACL como a confirmação clara de um falhanço: se o AO precisa de emendas, e não serão poucas, nunca devia ter entrado em vigor no estado em que está. Os que lamentam a sorte das "pobres criancinhas" caso haja agora mudanças, deviam ter pensado na quantidade de disparates que as obrigaram a aprender para agora, aos poucos, terem de os desaprender. É por isso que os fautores do acordo não querem mudar uma só vírgula: para não ajudarem a sublinhar a sua incompetência.

 

É, pois, tempo de deixar a habitual lassidão portuguesa e enfrentar o problema. Que se cheguem à frente defensores e detractores do acordo, porque já chega de conciliábulos mornos. Que volte tudo à mesa, para que, "remendando" o AO ou deitando-o fora, não haja mais escolhas impensadas, baseadas em panaceias há muito desmentidas. É curioso que um defensor do AO (considerando-o, ainda hoje, "obra meritória", que "já não pode ser denunciado por Portugal, como país digno"), D’Silvas Filho, tenha publicado há dias no seu blogue e no Pórtico da Língua Portuguesa um texto onde condena, nos vocabulários ortográficos, "a sanha contra as consoantes não articuladas" por uma "obsessão no simplificacionismo. A língua é um complexo que traz consigo a herança de muitas gerações de falantes que a foram aperfeiçoando na comunicação. A língua é mais do que ortografia, mas esta tem interferência na linguagem, por exemplo, nos retornos sobre a fonia. Só se deve alterar a ortografia com pinças, com ciência, senão a fluidez da comunicação intergerações e o encanto das virtualidades da língua podem perder-se." Foi isto que foi feito com o AO90? Só um lunático responderá pela afirmativa.

 

Apesar da vã retórica, nenhum benefício foi ainda mostrado como resultante da imposição das regras do AO90. O silêncio dá jeito, porque encobre todo o tipo de más opções e desvarios. Mas na língua não há silêncios. Ela rodeia-nos a toda a hora, falada, escrita, viva, múltipla. Um exemplo: numa extensa entrevista que o escritor brasileiro Pedro Maciel fez a Mário Soares e que permaneceu inédita até a Folha de S. Paulo a publicar postumamente, no dia 9, a última questão foi sobre a língua. Perguntou Pedro Maciel: "Não é uma bobagem a reforma ortográfica da língua portuguesa, já que a língua é um organismo vivo, dinâmico e muda-se conforme as novas gerações?" Respondeu Mário Soares: "O que é admirável na nossa comunidade é a variedade, a riqueza e as diferentes contradições. Os brasileiros têm locuções, maneiras de escrever e de falar diferente dos portugueses que enriquecem extraordinariamente a nossa língua, da mesma forma que os africanos e os portugueses. Cada um dá o seu tributo. Eu não sou um grande purista da língua e acho que as línguas são organismos vivos e são os povos que fazem as línguas. Não sou pela uniformização, mas pela variedade e pela diversidade dentro de uma unidade."

 

Que siga a discussão.»

 

Fonte:

https://www.publico.pt/2017/01/19/culturaipsilon/noticia/acordemos-para-desacordar-de-vez-1758650

 

publicado por Isabel A. Ferreira às 18:03

link do post | comentar | adicionar aos favoritos
partilhar

.mais sobre mim

.pesquisar neste blog

 

.Maio 2025

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
11
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

.posts recentes

. «‘sam-de-kid’, ou 100 man...

. Em Defesa da Ortografia (...

. «Em Defesa da Ortografia ...

. «Acordemos, para desacord...

.arquivos

. Maio 2025

. Abril 2025

. Março 2025

. Fevereiro 2025

. Janeiro 2025

. Dezembro 2024

. Novembro 2024

. Outubro 2024

. Setembro 2024

. Agosto 2024

. Junho 2024

. Maio 2024

. Abril 2024

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Agosto 2023

. Julho 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Março 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Outubro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Maio 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Fevereiro 2021

. Janeiro 2021

. Dezembro 2020

. Novembro 2020

. Outubro 2020

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Abril 2020

. Março 2020

. Fevereiro 2020

. Janeiro 2020

. Dezembro 2019

. Novembro 2019

. Outubro 2019

. Setembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Março 2019

. Fevereiro 2019

. Janeiro 2019

. Dezembro 2018

. Novembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Julho 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Abril 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Janeiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Outubro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Novembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Abril 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

.Acordo Ortográfico

A autora deste Blogue não adopta o “Acordo Ortográfico de 1990”, por recusar ser cúmplice de uma fraude comprovada.

. «Português de Facto» - Facebook

Uma página onde podem encontrar sugestões de livros em Português correCto, permanentemente aCtualizada. https://www.facebook.com/portuguesdefacto

.Contacto

isabelferreira@net.sapo.pt

. Comentários

1) Identifique-se com o seu verdadeiro nome. 2) Seja respeitoso e cordial, ainda que crítico. Argumente e pense com profundidade e seriedade e não como quem "manda bocas". 3) São bem-vindas objecções, correcções factuais, contra-exemplos e discordâncias.

.Os textos assinados por Isabel A. Ferreira, autora deste Blogue, têm ©.

Agradeço a todos os que difundem os meus artigos que indiquem a fonte e os links dos mesmos.

.ACORDO ZERO

ACORDO ZERO é uma iniciativa independente de incentivo à rejeição do Acordo Ortográfico de 1990, alojada no Facebook. Eu aderi ao ACORDO ZERO. Sugiro que também adiram.
blogs SAPO