Excelente texto, do historiador Rui Ramos (*), publicado no Jornal Observador em 16 de Maio de 2015.
Como as coisas em Portugal não desenvolvem, não avançam, só retrocedem, este texto está tão actual como no dia em que foi escrito. Até poderia ter sido escrito no século passado, estaria actualíssimo.
Daí que o reedite, porque é absolutamente um texto lapidar, para compreender este “negócio” do AO90, que está a abalar a Cultura Portuguesa, o Pensamento Português, a Filosofia Portuguesa, pois, neste momento, tudo isto está a ser inimaginavelmente arrasado, através de uma escrita reduzida à sua forma mais básica, como se os seus escreventes tivessem saído da primeira classe primária, com a noção apenas do alfabeto e de como juntar as letras: b+a = ba.
Todavia, um texto lamentavelmente indecifrável para o presidente da República Portuguesa para o primeiro-ministro de Portugal, e para o ministro dos Negócios [DOS] Estrangeiros (o dono da Língua), os quais, fazendo de Portugal o quintal deles, e dos Portugueses os seus serviçais, mantêm o AO90 que, conforme observa Rui Ramos, começou como um disparate e hoje não passa de uma indignidade.
E o que dizer da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP)? Uma farsa, para manter negócios.
Não deixem de ler.
Isabel A. Ferreira
Por Rui Ramos
«O Acordo Ortográfico é, entre nós, a última manifestação de um paroquialismo colonial que se voltou contra si próprio: não podendo aportuguesar o Brasil, vamos abrasileirar Portugal.
O chamado “Acordo Ortográfico” tornou-se obrigatório esta semana – ou talvez não, pois que tudo nesta matéria é confuso. O Brasil ou Angola são, geralmente, as razões dadas para passarmos do acto ao ato. Mas o Brasil nunca mostrou demasiado entusiasmo ou pressa em partilhar uma mesma ortografia com Portugal – a nova grafia ainda nem sequer é obrigatória por lá. Quanto a Angola, continua a pensar. A parte portuguesa andou aqui à frente. Porquê?
Para perceber o Acordo Ortográfico, não basta recuar a 1990. É preciso, pelo menos, voltar a 1961. Nesse ano, o ditador Salazar, sem consultar o país, decidiu que Portugal desenvolvera com os povos extra-europeus sujeitos à administração portuguesa uma relação tão especial, que se justificava defender essa administração contra tudo e contra todos. Em 1974, a direcção revolucionária das forças armadas, também sem consultar o país, decidiu abdicar dessa administração e abandonar territórios e populações à ditadura e à guerra civil dos chamados “movimentos de libertação”. Não renunciou, porém, ao mito da relação especial. Essa relação teve um novo avatar enquanto “solidariedade anti-imperialista”, quando uma parte do MFA também quis ser “movimento de libertação”, para depois, em democracia, se redefinir como “comunidade de língua”.
Foi assim que, para além das independências, as oligarquias democráticas mantiveram o império numa versão linguística, a que era consentida por uma das “línguas mais faladas do mundo”. Alguém então se terá lembrado que Fernando Pessoa escreveu algures que “a minha pátria é a língua portuguesa”. Nunca importou a ninguém o que Pessoa quis dizer com a frase, logo entendida como o direito de qualquer português continuar a sonhar com mapas onde Portugal, sendo talvez pequeno, tem uma língua muito grande (“a sexta mais falada do mundo”, etc.). Acontecia, porém, que, entre Portugal e o Brasil, havia diferenças. Era preciso apagar esses vestígios de fronteiras, pelo menos no papel. Só assim (argumentava-se), a língua poderia emergir como única e grandiosa, reunindo o que se separara e impondo-se ao que resistia. No fundo, este acordo ortográfico é apenas o sintoma de uma descolonização mal resolvida.
Dir-me-ão: mas não temos ou não deveremos cultivar as tais relações especiais com os Estados onde o português é língua oficial? Sim, claro. Mas é importante, a esse propósito, não esquecer duas coisas. A primeira é que relações especiais não significam necessariamente ausência de diferenças e de distâncias. Estas diferenças e distâncias são aliás, no que diz respeito ao Brasil, muito mais profundas e irreversíveis do que convém admitir ao imperialismo linguístico. O português escrito no Brasil não se distingue apenas pela ortografia, mas pelo vocabulário e sobretudo pela sintaxe. A existirem, as relações especiais não deviam depender de quaisquer homogeneizações, irrelevantes ou impossíveis, mas de uma maior intensidade de comunicação, que habituasse portugueses e brasileiros às características de escrever e de falar uns dos outros. Ao reconhecer isso, há porém que reconhecer isto: não há assim tanto interesse de um lado e do outro num intercâmbio demasiado enérgico. As culturas que tradicionalmente mais fascinam portugueses e brasileiros não são as dos outros países de língua portuguesa, mas, por muitas razões, a das grandes potências do Ocidente, como os EUA. Este Acordo Ortográfico é, portanto, uma ilusão.
Mas há uma segunda coisa: a língua portuguesa não nos une apenas ao Brasil ou a Angola ou a Moçambique, mas também à Espanha, à Itália, à França, mesmo à Inglaterra e a outros países europeus ou de formação europeia. E a esse respeito, o Acordo Ortográfico tem um efeito perverso: afasta o português escrito dessas outras línguas europeias, com as quais tem raízes comuns, por via da rejeição, como em reformas anteriores, da grafia etimológica. A palavra acto assim escrita ainda sugere a palavra act para um inglês que não fale português. Ato, não. Num momento de integração europeia, optamos por uma grafia tropical, destinada a complicar a decifração do português pelos nossos vizinhos e parceiros mais próximos (como se já não bastasse a nossa pronúncia impenetrável). Não vou reclamar o regresso da philosophia. Mas é pena que tivéssemos deixado de ter uma palavra que evocasse imediatamente a philosophie francesa ou a philosophy inglesa. Era aliás assim que Pessoa gostava da sua pátria: “Philosopho deve escrever-se com 2 vezes PH porque tal é a norma da maioria das nações da Europa, cuja ortografia assenta nas bases clássicas ou pseudo-clássicas”.
O Acordo Ortográfico é, entre nós, a última manifestação de um paroquialismo colonial que se voltou contra si próprio: não podendo aportuguesar o Brasil, vamos abrasileirar Portugal, a ver se salvamos o mapa onde não somos pequenos. Mas é precisamente assim que parecemos e somos pequenos. A grandeza, hoje em dia, deveria consistir em tratar os países que têm o português como língua oficial sem fraternidades falsas, paternalismos deslocados, ou sujeições ridículas. E passa também por perceber que há muito mais populações, para além das que falam português, com quem temos uma história e um destino em comum.
O resultado de todos estes devaneios de imperialismo linguístico é que deixámos de ter uma ortografia consensual. O regime tenta agora compensar isso através do terrorismo escolar exercido sobre crianças e jovens. O que começou como um disparate acaba numa indignidade.»
(*) Rui Ramos nasceu em 22 de Maio de 1962, licenciou-se em História na Universidade Nova de Lisboa, e doutorou-se em Ciência Política, na Universidade de Oxford. Professor e investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e professor convidado do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica. Escreveu, entre outros livros, A Segunda Fundação (1890-1926), volume VI da História de Portugal dirigida por José Mattoso (Círculo de Leitores), e a História de Portugal (Esfera dos Livros, em co-autoria com Bernardo de Vasconcelos e Nuno Monteiro), o qual recebeu o Prémio D. Dinis em 2009. Na imprensa, teve uma coluna semanal no Diário Económico (2005), e depois no Público (2006-2009), Correio da Manhã (2009) e Expresso (2010-2013). Colaborou em programas de debate semanal na RTP-N, TVI-24, SIC-N e Canal Q, e foi autor da série de 12 episódios “Portugal de...”, da RTP-1 (2006-2007).
Fonte:
https://observador.pt/opiniao/o-imperio-ortografico/
Excelente texto, de Rui Ramos.
Porém, lamentavelmente indecifrável para o primeiro-ministro de Portugal e para o presidente da República Portuguesa.
Rui Ramos
«O Acordo Ortográfico é, entre nós, a última manifestação de um paroquialismo colonial que se voltou contra si próprio: não podendo aportuguesar o Brasil, vamos abrasileirar Portugal.
O chamado “Acordo Ortográfico” tornou-se obrigatório esta semana – ou talvez não, pois que tudo nesta matéria é confuso. O Brasil ou Angola são, geralmente, as razões dadas para passarmos do acto ao ato. Mas o Brasil nunca mostrou demasiado entusiasmo ou pressa em partilhar uma mesma ortografia com Portugal – a nova grafia ainda nem sequer é obrigatória por lá. Quanto a Angola, continua a pensar. A parte portuguesa andou aqui à frente. Porquê?
Para perceber o Acordo Ortográfico, não basta recuar a 1990. É preciso, pelo menos, voltar a 1961. Nesse ano, o ditador Salazar, sem consultar o país, decidiu que Portugal desenvolvera com os povos extra-europeus sujeitos à administração portuguesa uma relação tão especial, que se justificava defender essa administração contra tudo e contra todos. Em 1974, a direcção revolucionária das forças armadas, também sem consultar o país, decidiu abdicar dessa administração e abandonar territórios e populações à ditadura e à guerra civil dos chamados “movimentos de libertação”. Não renunciou, porém, ao mito da relação especial. Essa relação teve um novo avatar enquanto “solidariedade anti-imperialista”, quando uma parte do MFA também quis ser “movimento de libertação”, para depois, em democracia, se redefinir como “comunidade de língua”.
Foi assim que, para além das independências, as oligarquias democráticas mantiveram o império numa versão linguística, a que era consentida por uma das “línguas mais faladas do mundo”. Alguém então se terá lembrado que Fernando Pessoa escreveu algures que “a minha pátria é a língua portuguesa”. Nunca importou a ninguém o que Pessoa quis dizer com a frase, logo entendida como o direito de qualquer português continuar a sonhar com mapas onde Portugal, sendo talvez pequeno, tem uma língua muito grande (“a sexta mais falada do mundo”, etc.). Acontecia, porém, que, entre Portugal e o Brasil, havia diferenças. Era preciso apagar esses vestígios de fronteiras, pelo menos no papel. Só assim (argumentava-se), a língua poderia emergir como única e grandiosa, reunindo o que se separara e impondo-se ao que resistia. No fundo, este acordo ortográfico é apenas o sintoma de uma descolonização mal resolvida.
Dir-me-ão: mas não temos ou não deveremos cultivar as tais relações especiais com os Estados onde o português é língua oficial? Sim, claro. Mas é importante, a esse propósito, não esquecer duas coisas. A primeira é que relações especiais não significam necessariamente ausência de diferenças e de distâncias. Estas diferenças e distâncias são aliás, no que diz respeito ao Brasil, muito mais profundas e irreversíveis do que convém admitir ao imperialismo linguístico. O português escrito no Brasil não se distingue apenas pela ortografia, mas pelo vocabulário e sobretudo pela sintaxe. A existirem, as relações especiais não deviam depender de quaisquer homogeneizações, irrelevantes ou impossíveis, mas de uma maior intensidade de comunicação, que habituasse portugueses e brasileiros às características de escrever e de falar uns dos outros. Ao reconhecer isso, há porém que reconhecer isto: não há assim tanto interesse de um lado e do outro num intercâmbio demasiado enérgico. As culturas que tradicionalmente mais fascinam portugueses e brasileiros não são as dos outros países de língua portuguesa, mas, por muitas razões, a das grandes potências do Ocidente, como os EUA. Este Acordo Ortográfico é, portanto, uma ilusão.
Mas há uma segunda coisa: a língua portuguesa não nos une apenas ao Brasil ou a Angola ou a Moçambique, mas também à Espanha, à Itália, à França, mesmo à Inglaterra e a outros países europeus ou de formação europeia. E a esse respeito, o Acordo Ortográfico tem um efeito perverso: afasta o português escrito dessas outras línguas europeias, com as quais tem raízes comuns, por via da rejeição, como em reformas anteriores, da grafia etimológica. A palavra acto assim escrita ainda sugere a palavra act para um inglês que não fale português. Ato, não. Num momento de integração europeia, optamos por uma grafia tropical, destinada a complicar a decifração do português pelos nossos vizinhos e parceiros mais próximos (como se já não bastasse a nossa pronúncia impenetrável). Não vou reclamar o regresso da philosophia. Mas é pena que tivéssemos deixado de ter uma palavra que evocasse imediatamente a philosophie francesa ou a philosophy inglesa. Era aliás assim que Pessoa gostava da sua pátria: “Philosopho deve escrever-se com 2 vezes PH porque tal é a norma da maioria das nações da Europa, cuja ortografia assenta nas bases clássicas ou pseudo-clássicas”.
O Acordo Ortográfico é, entre nós, a última manifestação de um paroquialismo colonial que se voltou contra si próprio: não podendo aportuguesar o Brasil, vamos abrasileirar Portugal, a ver se salvamos o mapa onde não somos pequenos. Mas é precisamente assim que parecemos e somos pequenos. A grandeza, hoje em dia, deveria consistir em tratar os países que têm o português como língua oficial sem fraternidades falsas, paternalismos deslocados, ou sujeições ridículas. E passa também por perceber que há muito mais populações, para além das que falam português, com quem temos uma história e um destino em comum.
O resultado de todos estes devaneios de imperialismo linguístico é que deixámos de ter uma ortografia consensual. O regime tenta agora compensar isso através do terrorismo escolar exercido sobre crianças e jovens. O que começou como um disparate acaba numa indignidade.»
Fonte:
https://observador.pt/opiniao/o-imperio-ortografico/