Uma carta dirigida ao Dr. Luís Marques Mendes, comentador da SIC, que me foi enviada via e-mail, por um português residente no Canadá, há vários anos. Uma visão de alguém que, longe de Portugal, tem uma percepção racional do que aqui se passa, a percepção de alguém que saiu de Portugal, mas não quer voltar, porque Portugal não lhe oferece o que se espera do próprio país, um país que praticamente expulsa os seus, a sua mão-de-obra qualificada, e recebe os de fora, concedendo-lhes, de mão-beijada, o que não concede aos de dentro.
Subscrevo esta Carta.
Isabel A. Ferreira
«Prezado Dr. Marques Mendes,
Não é que discorde do que disse no seu comentário de ontem (que ouvi até ao fim, antes de começar a escrever...).
Mas gostava de lhe dar a minha visão do assunto, comparando o Portugal que conhecia com o Canadá que conheço.
Portugal desceu da Galiza, e não indo atrás até aos Visigodos e "Mouros", passou há muitos anos a ter uma população homogénea, com relativamente pouca diferenciação.
O Canadá tinha população original, povos chamados Micmac, Algonquin, Huron, Mohawk, Cree, Inuit, etc...
Contudo, vieram imigrantes que os dominaram, tentaram apagá-los (retirando crianças às famílias, instalando-as em 'escolas' residenciais, proibindo-as de falar as suas próprias línguas, e fazendo coisas abusivas do género que recentemente foi assunto em Portugal).
O actual Papa veio há pouco tempo ao Canadá, andou por aí, pediu desculpa, mas não foi tão longe como os nativos esperavam, e quando no avião de volta a Roma lhe perguntaram porque não tinha usado a palavra 'genocídio', ele disse que não lhe tinha ocorrido!!... Ha!...
Os povos nativos (chamados aqui "Primeiras Nações") ainda existem, em poucos números, marginalizados, alguns em 'reservas'. Fazem-lhes o favor de não pagar impostos federais (aqui no sul do Ontário, passei uma vez num local que sabia ser "pertença" deles, e vi um posto de gasolina com preços fantasticamente baixos... Mas não me venderam, porque eu não tinha nem cara nem cartão que me identificasse como tendo esse direito...).
Onde eu quero chegar, é que em contraste com Portugal, o Canadá é um país de imigrantes.
Primeiro franceses, depois britânicos que tomaram a primazia, e chamaram a esta colónia "Domínio do Canadá" (nome que ainda era oficial quando eu cheguei).
Era tão "dominado", que ainda havia, por lei, o costume de tocar o 'God save the Queen' no fim de sessões de cinema (o que fazia os espectadores fugirem assim que as legendas finais começavam a aparecer).
Aliás, o Canadá nos anos 60 não tinha bandeira própria nem sequer hino!
O PM do dia era contra...
Mesmo a propósito, foi agora no dia 1 o Dia do Canadá (que antes era chamado em inglês Dominion Day).
Então por favor veja estes dois artigos do Toronto Star (jornal que apoia os partidos Liberais, i.e., tanto o federal como o do Ontário - aqui há partidos federais, e cada província e território também tem os seus).
Têm a ver com imigração e diversidade.
Neste, não perca os comentários...
E neste, repare nos números, especialmente na população imigrante em Toronto.
Então com a eleição de Olívia Chow na semana passada (com 37% dos votos, porque nos sistemas não-democráticos britânicos não há segunda volta), temos uma Presidente da Câmara apoiada pelo partido de cujo o seu falecido marido era líder, mas que não fala inglês correcto, e tem pronúncia esquisita.
Ana Bailão, em segundo lugar, veio de Portugal com 15 anos... Era apoiada por este jornal.
Imagine um estrangeiro/a a candidatar-se a Presidente da Câmara e a ganhar...
Ora tanta e tão variada imigração faz com que o país se torne amorfo.
O Quebeque era bem afrancesado e a parte onde vivo era feita quase exclusivamente de anglo-saxónicos.
Depois vieram ucranianos, que se dirigiram às pradarias do Manitoba.
Depois italianos, portugueses só na década de 50, e depois então é que se escancaram as portas, mais recentemente com migrantes ilegais que apesar de estarem nos EUA, vêm pedir "refúgio" no Canadá.
Isto impede que exista uma consciência "nacional" no país, ainda mais prejudicada por o Chefe de Estado ser o rei de Inglaterra!
Em Portugal, ainda não se chegou a este ponto.
Mas o Benformoso já não é o que era...
Nem o Martim Moniz, tomado por uma multidão festejando o Eid na semana passada. Para onde foi a procissão da Senhora da Saúde?...
E no interior, também. Perto de Viseu, uma igreja é dispensada a ucranianos regularmente.
Em entrevistas de rua, é confrangedor o número de brasileiros a quem é emprestado o microfone.
800.000 estrangeiros num país tão pequeno são demais!
E dentro destes números, 31% de brasileiros ainda é pior.
Portugal levou africanos para o Brasil.
Estes, com a pronúncia das línguas deles, por ser bastante sonora, afectaram o Português que se falava nesse tempo (não sei, mas podia ainda ser parecido com o Galego).
Agora, a quantidade enorme de brasileiros, com a sua qualidade igualmente sonora (uma característica dominante) também têm grande influência na língua.
Quando o PM, falando por nós todos, diz que gostaríamos de falar com o sotaque deles, e quando o PR se põe a imitar a fala brasileira (deixando Chico Buarque espantado), e quando a SIC tem um (ocasional) repórter brasileiro em Portugal, e a TVI/CNN usa um brasileiro para falar de futebol (como se se tivessem esgotado portugueses com esse talento), o futuro da língua verdadeiramente portuguesa não é brilhante.
Isto para não falar no desastre que é o Acordo de 1990 (não usado no Brasil!) e nos erros que já se ouvem há tempo no Português falado (até já escutei o PR a dizer que "se resolva rápido", em vez de rapidamente).
Imigrantes do sul da Ásia não afectam a Língua Portuguesa, e até a aprendem.
Africanos dos PALOP têm uma certa pronúncia, mas nem chega a ofender, pois falam Português.
A Ksenia Ashrafullina (8 anos de Portugal) é como eu, tem jeito para línguas, e fala um português excelente, por vezes mesmo com a naturalidade duma portuguesa.
Tem a cidadania portuguesa, e assim devia ser chamada, e não ainda 'russa', como referida, entre outros, até pelo PR, o que é uma desfeita.
Não lhe serviu de muito adquirir a cidadania, e esse tipo de imigração, que não considera como "novos portugueses" os imigrantes, não lhes deve agradar.
Contudo, brasileiros acham que falam português, e não aprendem a falar o português local, como uma senhora que num hospital disse que tinha um "corrimento marron", e ficou toda ofendida, dizendo-se "discriminada", porque a enfermeira não sabia que eles usam essa palavra em vez de "castanho".
E brasileiros não entendem completamente o Português, como é minha experiência, e foi demonstrado quando Lula não entendeu uma pergunta que lhe foi feita e repetida por uma jornalista bem perto dele!
Houve quem dissesse que ele não queria responder, mas acredito que ele não compreendeu mesmo o Português!
Eu viajei muito no Brasil, desde Manaus, nordeste, sertão, até Foz do Iguaçu, e senti essa falta de sintonização e desconhecimento do português padrão.
O visto "para procurar emprego", criado pelo governo, é um convite à imigração ilegal e à permanência fora dos limites.
Isto é o governo a dizer “venham e fiquem”, porque precisamos de gente, seja quem for.
Ainda estou à espera dos escândalos que essa JMJ vai produzir, culpa dum governo que se confunde com religiosos.
Pelo que vejo de longe, Lisboa está a ficar descaracterizada, e não me admirava se daqui a umas dezenas de anos, deitassem abaixo a Alfama e a minha Mouraria e pusessem arranha céus...
Cuidado com imigração a mais!
Eu preferia Portugal pobrezinho, mas ainda português.
"Enquanto houver Santo António, Lisboa não morre mais."
Pois, mas o teclado Google quer que escreva Antônio, à brasileira...
[Tive que interromper a escrita, e quase perdi o fio à meada, para ver "Os Batanetes", na TVI Internacional, como que o Monty Python à portuguesa antiga...]
Calorosos cumprimentos,
C. Coimbra»
Mais um excelente texto de Manuel Monteiro, que nos diz que o acordo ortográfico «é uma grande comédia. Uma grande paródia.»
Texto de Manuel Monteiro
Recentemente, apareceu escrito num canal televisivo: “Aconselhou-me a fazer uma comediação.” Nada que ver com comédia — trata-se da versão acordizada de “co-mediação”. Em suma, o Acordo é uma comédia, uma grande paródia.
Há uns anos, na RTP2, vi uma série em que, numa faculdade, o professor pedia aos alunos que, na aula seguinte, defendessem uma ideia ou ideologia contrária àquela que era a sua crença arraigada. Tento aqui executar semelhante exercício.
Comecemos com algumas frases.
“Tirámos o curso de Medicina.”
“Andámos expectantes na Rua do Ouro e na descaracterizada Avenida Almirante Reis.”
“Rezámos a Santo António.”
“Desligámos o interruptor.”
“Visitámos o Palácio Nacional da Ajuda, o Largo do Carmo, a Igreja do Bonfim e o Pavilhão de Portugal.”
“Iremos à Sé de Braga.”
“Descaracterizámos ou deixámos descaracterizar Lisboa.”
“Chegámos ao Templo de Salomão.”
“O professor quer que dêmos tudo na aula de Matemática.”
As frases apresentadas, sem o Novo Acordo, têm uma forma ortográfica. Com o novo, terão quantas? Vejamos.
“Tirámos [com ou sem acento] o curso de Medicina [com maiúscula ou minúscula inicial].”
“Andámos [com ou sem acento] expectantes [com ou sem c] na Rua do Ouro [com maiúscula ou minúscula inicial] e na descaracterizada [com ou sem c] Avenida Almirante Reis [com maiúscula ou minúscula inicial].”
“Rezámos [com ou sem acento] a Santo António [com maiúscula ou minúscula inicial].”
“Desligámos [com ou sem acento] o interruptor [com ou sem p para a Porto Editora ou o Portal da Língua Portuguesa, por exemplo].”
“Visitámos [com ou sem acento] o Palácio Nacional da Ajuda [com maiúscula ou minúscula inicial], o Largo do Carmo [com maiúscula ou minúscula inicial], a Igreja do Bonfim [com maiúscula ou minúscula inicial] e o Pavilhão de Portugal [com maiúscula ou minúscula inicial].”
“Iremos à Sé de Braga [com maiúscula ou minúscula inicial].”
“Descaracterizámos [com ou sem c e com ou sem acento, ou seja, quatro formas ortográficas] ou deixámos [com ou sem acento] descaracterizar [com ou sem c] Lisboa.”
“Chegámos [com ou sem acento] ao Templo [com maiúscula ou minúscula inicial] de Salomão.”
“O professor quer que dêmos [com ou sem acento] tudo na aula de Matemática [com maiúscula ou minúscula inicial].”
Resposta: 33 554 432 formas ortográficas. A conta: 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 x 2 = 33 554 432.
O Acordo permite a plurigrafia e esta pode ser bem divertida. Morte à ortografia!
Acresce uma nota curiosa. Quando à primeira pessoa do plural se liga a forma pronominal “nos”, o s desaparece. Exemplos: “Nós amámos”, “Nós sentámos”. Pospondo-lhe “-nos”, ficará “Nós amámo-nos”, “Nós sentámo-nos”. Com o Novo Acordo, “amámos” e “sentámos” (meros exemplos entre uma miríade), referindo-nos a um tempo pretérito, podem ter ou não ter acento. Ou seja, poderemos suprimir o s de “sentámos” ou “sentamos” quando se liga à forma pronominal “nos”, referindo-nos ao pretérito perfeito. “Sentamo-nos”[1] poderá ser, com o Acordo, uma ordem, uma sugestão ou uma referência ao passado — aquilo que, sem o Acordo, será obrigatoriamente “Sentámo-nos”.
Como é divertido ainda usar o prefixo “co-”. Temos “conavegante”, “corrés”. Sem o Acordo: “co-navegante”, “co-rés”. Temos “cocomissário”, “cocomandante”; não, não é o missário do coco nem o mandante do coco — vejamos sem Acordo: “co-comissário”, “co-comandante”. Temos ainda o “co-mandante” transformado em “comandante”. Recentemente, como poderá ver na página dos Tradutores contra o Acordo Ortográfico, numa publicação de 27 de Outubro, apareceu escrito num canal televisivo: “Aconselhou-me a fazer uma comediação.” Nada que ver com comédia — trata-se da versão acordizada de “co-mediação”.
Em suma, o Acordo é uma comédia, uma grande paródia. E quem não gosta de uma boa pândega?
[1] No imperativo: “sentemo-nos”.
Autor de Por Amor à Língua — Contra a Linguagem Que por aí Circula
Fonte:
https://www.publico.pt/2018/07/16/culturaipsilon/opiniao/admiravel-lingua-nova-parte-viii-1838111
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