Este texto de José Gil foi escrito em 17 de Fevereiro de 2012, para a Visão, altura em que esta revista ainda usava a grafia correCta, ou seja, a grafia de 1945, que está em vigor e nunca deixou de estar. Mas há quem prefira violar a lei, mais do que cumpri-la.
Ainda hoje ouvi a Ministra da Defesa, no Telejornal da SIC, dizer, a propósito da recusa de um grupo de militares em seguir no navio Mondego, numa missão, por entenderem que o barco não estava em condições de navegar (o que parece não ter sido o caso) que as ordens não são negociáveis, só há espaço para NÃO obedecer a ordens ilegais.
Sabendo-se como se sabe que a aplicação do AO90 é comprovadamente ilegal e inconstitucional, ninguém em Portugal tem a obrigação de obedecer a uma ordem para aplicar o ilegal AO90, ainda mais não existindo LEI alguma que a tal obrigue.
Mas há quem goste de obedecer servilmente, acriticamente, vá-se lá saber com que motivações.
Por que trouxe à liça este texto? Para o enviar aos que governam, para que saibam que a RESISTÊNCIA existe e que nós gritamos com José Gil e com Jorge de Sena, porque «há-de haver quem ouça, ainda há-de haver quem ouça. (...)»
«(...) Todavia,
é teu dever gritar além dos gritos.
Ao menos grita o teu protesto agudo.
O grito do silêncio que te amarra.
A liberdade, a paz, a ordem necessária
a que um país resista ao próprio mal
que leva no seu sangue secular.
Grita por isto a voz do teu silêncio.
(...) Ah grita:
importa pouco se te escuta alguém,
no redemoinho tenso da surdez danada.
Porque há-de haver quem ouça, ainda há-de haver
quem ouça. (...)»
("O Grito do Silêncio", Jorge de Sena, "40 Anos de Servidão")
Isabel A. Ferreira
«Além de ser afectiva, a ortografia marca um espaço virtual de pensamento. Com o AO teremos limites e contornos mais visíveis que serão muros de uma prisão»
'Parece que, a pouco e pouco, o Acordo Ortográfico vai perdendo terreno. Todos os argumentos que o criticam foram já repetidamente enunciados: desde a importância de a etimologia ser irreconhecível nas palavras desfiguradas, ao factor, intolerável, de se impedir assim o livre desenvolvimento e transformação do português. Este é, sem dúvida, um dos aspectos mais graves desse Acordo imposto artificialmente a todo um mundo de falantes da língua portuguesa.
Uma língua é um organismo vivo e, segundo o seu contexto social, geográfico, histórico, demográfico, económico, geopolítico, transforma-se imprevisivelmente. É a multiplicidade livre dos movimentos que fazem evoluir naturalmente uma língua que permite o surgimento de casos extremos, geniais, que subvertem a língua ao ponto de inventarem novas sintaxes dentro da sintaxe habitual: esses casos, revolucionários, como o de Guimarães Rosa ou de Pessoa, só são possíveis quando o espaço virtual de liberdade interna da língua se solta e ousa, para além do uso rotineiro e correcto da gramática.
Então nascem novas gramáticas (como a do Livro do Desassossego ou a do Grande Sertão: Veredas), novas palavras e expressões, os horizontes da língua abrem-se indefinidamente (até onde Pessoa poderia ter ido para além de onde foi? Ninguém duvida de que poderia ter ido mais longe ainda, mas ninguém sabe para onde e até onde teria ido). Então descobre-se a maravilha de ser possível uma outra expressão linguística, um insuspeitável sentido das coisas, um outro pensamento. E uma outra expressão é uma dimensão até ali escondida, por dizer e para ser dita, da liberdade. Porque impede (ou entrava) tudo isto, o AO é repressivo e destruidor.
Mas não são só as possibilidades dos casos extremos que são afectadas. Porque todos nós vivemos nesse meio natural das distâncias soltas e invisíveis que a língua cria a cada instante: no calão (língua do corpo), no humor, no jogo certeiro de um argumento, na invenção, por uma criança, de um palavrão. Vivemos mergulhados na liberdade da língua, para a qual permanentemente contribuímos. É que nós dizemos mesmo o que não sabemos que dizemos. Através do inconsciente da língua, o sentido físico, arcaico, dos fonemas, as sensações ligadas às letras, a doçura e a aspereza do ar inspirado e expirado no som inarticulado ou palreado pelo bebé são retomados sem o saber pelo adulto na palavra articulada. A ortografia é afectiva, polissémica, racional e fugidia, conectiva e disjuntiva (aliterações, ressonâncias, ritmos, cromatismos, etc.), indutora de associações com novas palavras e construindo non-sens. Induz um espaço indefinido de criação. Como eu amava «auto-retrato» e me sinto esmagado pelo «autorretrato»! Porque contraria este movimento natural da escrita, o AO é néscio e grosseiro.
Um último efeito, talvez o mais grave: o Acordo mutila o pensamento. A simplificação das palavras, a redução à pura fonética, o «acto» que se torna «ato», tornam simplesmente a língua num veículo transparente de comunicação. Todo o mistério essencial da escrita que lhe vem da opacidade da ortografia, do seu esoterismo, desaparece agora. O fim das consoantes mudas, as mudanças dos hífenes, a eliminação dos acentos, etc., transformam o português numa língua prática, utilitária, manipulável como um utensílio. Como se expusesse todo o seu sentido à superfície da escrita. O AO afecta não só a forma da língua portuguesa, mas o nosso pensamento: com ele seremos levados, imperceptivelmente, a pensar de outro modo, mesmo se, aparentemente, a semântica permanece intacta. É que, além de ser afectiva, a ortografia marca um espaço virtual de pensamento. Com o AO teremos, desse espaço, limites e contornos mais visíveis que serão muros de uma prisão, onde os movimentos possíveis da língua empobrecerão. Como numa suave lavagem ao cérebro.»
«Podemos livrar-nos de Trump ou até do bicho coroado que nos atormenta, mas tardamos a livrar-nos da pseudo-ortografia.» (Nuno Pacheco)
Por Nuno Pacheco
Por má sina ou fatalidade, há coisas de que não nos livramos. Podemos livrar-nos de Trump, poderemos até livrar-nos do bicho coroado que nos atormenta, mas há um mal que continua a perseguir-nos sem desfalecer e que alastra como uma praga: a pseudo-ortografia. Houve até quem, de forma brilhante e acertadamente, lhe inventasse nome: pentaortografia. Num artigo bem recente, de 5 de Dezembro, no Diário do Minho, M. Moura Pacheco (ao qual, apesar do apelido, não me unem laços familiares) veio explicar de forma sucinta esta magno problema.
Começa assim: “Quando eu aprendi a escrever, havia duas ortografias: a certa e a errada. Agora há, pelo menos cinco. E todas auto-consideradas certas – é a pentaortografia.” Quais são? Ele explica: primeiro, a ortografia clássica ou antiga (a do acordo, ou reforma, de 1945); depois, “a do chamado ‘acordo ortográfico’ que, por sinal, nunca foi acordado”; em seguida, há “a ortografia do ‘super-acordo’ ou dos fanáticos do ‘acordo’. São aqueles que não podem ver uma consoante antes de outra sem que, zelosamente, a façam cair”; em quarto lugar, vem “uma mistura das três anteriores, em doses e proporções ao gosto de cada um, em ‘cocktails’ sortidos de um extenso cardápio.”; e, por fim, a quinta ortografia: “É a que não se integra em nenhuma das anteriores, que está errada à luz de qualquer delas, que desvirtua a fonética, atraiçoa a etimologia, ofende a morfologia e atropela a sintaxe. Uma espécie de sublimação da anterior. Mas é, talvez, a mais popular de todas.” Daí esta conclusão do autor, professor universitário aposentado: “Das duas velhas ortografias, o ‘acordo’ que ninguém acordou conseguiu fazer cinco – a pentaortografia. É o que se chama produtividade cultural!!!” Outra voz que se tem levantado, com regular insistência, contra tal realidade e dando exemplos, é a de João Esperança Barroca, na série “Em defesa da ortografia”, no jornal Cidade de Tomar.
Exagero? Antes fosse. Todos os dias, e é bom aqui sublinhar todos, surgem exemplos desta novilíngua que se vai insinuando pela má escrita e que, sem ameaçar a língua portuguesa (que já resistiu a tanto e há-de resistir a tudo), ameaça impiedosamente a nossa paciência. Alguns exemplos, recolhidos por olhares atentos, permitem uma avaliação sumária de tais misérias.
Na rua, um sinal de proibição de trânsito ressalva excepo [por excepto] acesso à escola”, bem perto de um outro onde se anuncia “Todas as direcções” (à “antiga”, com cç). Na RTP, no Jornal da Tarde, lemos este aviso: “Restrições do fim-de-semana impõem novos horários para espétaculos [!] culturais”; enquanto isso, num anúncio governamental de restrições devido à pandemia, lia-se nas projecções atrás do primeiro-ministro: “Limitação de circulação na via pública nos 121 concelhos, ao fim-de-semana a partir das 13h.” Um desgoverno no aplicar do Acordo Ortográfico de 1990, que, na caça aos hífenes, impôs como norma fim de semana.
Quem diz hífenes diz acentos. Mão zelosa deve ter achado por bem este título “A ERC pode por [em lugar de pôr] em causa a sobrevivência da TVI” (Visão, 24/11). Quanto a “impatos”, “patos” ou “estupefatos”, vão surgindo a eito, apesar de se pronunciar claramente o omitido C em impaCto, paCto ou estupefaCto. No artigo “Costa apresenta plano para investir 43 mil milhões até 2030”, no Observador (22/11), lá vinha: “com menor impato no clima”; o mesmo numa circular de formação escolar, onde se menciona o “impato nos currículos”. Já num antigo artigo da Visão (“Quando a Europa vai à Escola”), apesar de aí se escrever “impacto” sem erro, surge esta linda frase: “É sempre preciso patuar com algo que não é o ideal”; e na TVI (26/2) tivemos ainda esta pérola: “Setor bancário está estupefato com esta decisão.”
Isto já para não falar nos “artefatos tecnológicos” (numa comunicação sobre Tecnologia Educativa), no “julgamento por corrução do ex-presidente Sarkozy” (Lux, 30/11), na “interrução de trânsito” (Câmaras do Machico e do Funchal), ou na “queda de um helicótero” [por helicóptero] em notícias publicadas em 2019 em jornais de Coimbra e da Madeira.
O impato de tudo isto deixa-nos estupefatos. O melhor é ir a um espétaculo, a ver se passa.
Mas que invasão mais insólita!
Eurocéticos? Quem serão estes?
A Visão teria sido informada por extraterrestres que iremos ser invadidos por essa espécie desconhecida de alienígenas?
Serão parecidos com os terrestres?
Cá por mim, desconfio que sejam acordistas que perderam o rumo e não conseguem discernir, por isso, vestem as palavras portuguesas com uma roupagem tão antinatural, que parecem gatafunhos de outro planeta, e invadem-nos com esta mixórdia ortográfica.
Se vamos ser invadidos por eurocéticos, talvez seja melhor prepararmo-nos para os mandar de volta para o lugar obscuro de onde vieram.
Nós, os Portugueses, não queremos cá esse tipo de invasores.
De facto, esta é a Visão como nunca a vimos: de uma subserviência cega a um Poder também ele completamente cego.
Esta é que é a verdadeira invasão: a dos que escrevem às cegas.
Fonte da notícia desta invasão insólita:
http://visao.sapo.pt/atualidade/2019-03-10-Vem-ai-uma-invasao-de-euroceticos-
Isabel A. Ferreira
Hoje, dia 23 de Abril, comemora-se, por todo o mundo, o Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor, criado na XXVIII Conferência Geral da UNESCO que ocorreu entre 25 de Outubro e 16 de Novembro de 1995, para promover o prazer da leitura, a publicação de livros e a protecção dos direitos autorais.
Porquê 23 de Abril? Porque foi no dia 23 de Abril de 1616 que morreram dois grandes nomes da Literatura Universal: William Shakespeare e Miguel de Cervantes.
E em Portugal? O que há para celebrar em relação aos livros que hoje se publicam, por aí?
Esta é uma pequeníssima amostra da minha Biblioteca, que acolhe várias colecções e edições antigas, outras mais modernas, publicadas, por exemplo, pelo Jornal Público (que se mantém fiel à grafia portuguesa); ou pela Visão e pelo Expresso, no tempo em que estes ainda publicavam em grafia portuguesa; obras completas autografadas, de autores contemporâneos; obras completas dos clássicos portugueses e de estrangeiros (neles estando incluídos os meus preferidos autores lusógrafos); livros de História e das Ciências auxiliares da História, Filosofia, Política, Ciência, Religiões, Poesia, Arte, Literatura, Biografias, Dicionários, Prontuários, Gramáticas, Enciclopédias, enfim, um mundo de livros, que é o meu verdadeiro mundo.
Porém, na minha Biblioteca não entram obras acordizadas, ainda que fique com colecções de obras de autores contemporâneos, por completar; e como era (já não sou mais, por já não haver no mercado obras com qualidade linguística, que me seduzam, exceptuando os autores de renome, que não se renderam ao modismo linguístico, ou os publicados por editoras com verdadeiro brio profissional, que são uns oásis no meio do deserto editorial português), dizia eu, como era uma compradora de livros compulsiva, hoje, tenho um acervo de boas obras ainda por ler, e se não fizesse mais nada na vida, e me pusesse a ler de manhã à noite, teria leitura, com prazer, até ao fim dos meus dias, e, ainda assim, deixaria, com muita mágoa minha, aliás, como vou deixar, várias centenas ainda por ler.
Hoje, o que há para celebrar neste dia 23 de Abril, quando as publicações, as traduções, as revisões dos livros e até algumas escritas estão nas mãos de ignorantes?
Sim, de ignorantes.
E para que não digam que estou a insultar, chamando ignorantes aos que estão a destruir a Língua Portuguesa e a desleixar tudo o que diz respeito à publicação de um livro, algo que deve ser quase sagrado, feito com Arte e Saber, aqui fica o significado de ignorante:
Aquele que não sabe, desconhece, ignora, que não tem conhecimentos, saber, instrução, formação, cultura ou competência em determinada matéria; que não tem conhecimentos teóricos ou práticos em determinado domínio…
E a edição em Portugal, salvo raras e honrosas excepções, não estará nas mãos daqueles que pouco ou nada sabem de Línguas, de traduções, de revisão tipográfica? Daqueles que não têm conhecimentos, nem teóricos ou práticos, da Língua Portuguesa? Daqueles que não têm competência alguma no domínio da Língua, e editam obras sem a mínima qualidade, cheia de erros (e nestes está excluída a grafia brasileira preconizada pelo AO90), erros de todo o género. A edição de livros, hoje, é uma edição descuidada.
No passado mês de Fevereiro, desloquei-me à Feira do Livro do Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, exclusivamente para comprar o livro Gadanha do meu amigo Aurelino Costa, um poeta poveiro que muito aprecio, editado pela Modo de Ler – Centro Literário Marinho, Ldª., cujo lançamento se realizou durante o Correntes, prefaciado por António Cabrita, tudo escrito em boa Língua Portuguesa. Um primor de livro: capa, paginação, grafia e, obviamente, o conteúdo.
Dei uma volta pela Feira. Uma autêntica desgraça. Mas o que mais me feriu, foi ver as obras para a infância, de Sophia de Mello Breyner, acordizadas, pela porto editora, assim em letras minúsculas, à acordês, porque não será mais do que o mês de abril, escrito em minúsculas, também à acordês.
Senti-me insultada. Isto sim, é um verdadeiro insulto, não só à memória de Sophia, como a todos os Portugueses que prezam a Língua Portuguesa.
Soube que, este ano, esta Feira do Livro foi um autêntico fracasso. E eu, que, nesta feira, gastava fortunas em livros, limitei-me a comprar o Gadanha, do meu amigo Aurelino.
Por isso, hoje, Dia Mundial do Livro, celebro a Minha Biblioteca Impoluta, onde não permito a entrada de edições acordizadas.
Isabel A. Ferreira
. «José Gil - Sobre o Acord...
. «Viagem alucinante pelo p...
. TÍTULO DE UM ARTIGO NA “V...
. NO DIA MUNDIAL DO LIVRO C...